Entre a dor e o nada, prefiro a dor

Jornal O Norte
13/10/2006 às 13:54.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:42

Délio Pinheiro *

A velhice nunca é vista com bons olhos. Ao contrário, costumamos camuflá-la com quilos de botox e de presunção. Nós, jovens, imaginamos que jamais seremos como aquele nosso avô, cheio de rugas e rancores. E nunca imaginamos que o viço de nossa pele e a clareza de nosso pensamento possam um dia se dissipar. E fatalmente isso vai acontecer, em maior ou menor escala.

É assim o fim de nossa aventura existencial, desse engodo que nos foi oferecido sem nossa anuência. A vida, aos olhos de quem já está mais pra lá do que pra cá, teima em parecer injusta, insuficiente. Mas para uma criança parece ser algo inalcançável, impossível de se imaginar de uma só vez. "80 anos", "60 anos", parecem promessas de eternidade para quem tem uma década de vida.

Lembro que eu, nessa idade, me imaginava casado, com muitos filhos, com fazenda, carros, livros lançados e rico, tudo isso aos 30 anos. E olha que não me resta muito tempo até me tornar um trintão e dessas promessas de infância nenhuma ainda se cumpriu. Agora, eu decidi, essas promessas estão adiadas por mais uma década, pelo menos. Quem sabe até lá...

A literatura está repleta de ótimos textos que abordam a velhice. Um conto de Herbert G. Wells, que foge da ficção científica, conta a história de um jovem que é escolhido como herdeiro universal por um velho desconhecido, com a condição de que ele aceite sem reclamar assumir o nome do ancião. No dia seguinte, já de posse do dinheiro e da imensa mansão do velho, ele acorda e olha para as próprias mãos, e elas se tornaram enrugadas. Em seguida ele olha para o espelho e tem uma surpresa: ele se tornou o velho. No mesmo instante ele percebe que o velho agora estava em algum lugar, vivendo sua vida e sua juventude.

Ainda bem que neste particular a velhice, e a morte, não fazem a menor distinção entre os seres humanos, nem entre aqueles semi-endeusados como os atores de Hollywood ou da Globo, e o mais humilde dos vendedores de laranja de feira suburbana. Ela é democrática. Assim como nenhum dinheiro do mundo é suficiente para se comprar uma Coca Cola melhor do que aquela que o garoto que faz malabarismo nos sinais toma em seus raros momentos de prazer, a velhice também não faz distinção. E Bill Gates, fique certo, bebe da mesma Coca que você e se tornará um velhinho altruísta e cheio de manias. Não muito diferente daquele seu avô, cheio de rugas e rancores.

Já que falei em celebridades, nessa semana eu viu uma foto da Brigitte Bardot que me deu um belo baque, já que a imaginava como a vi numa Sessão de Gala destas aí da TV aberta, linda e sestrosa. Mas ela está exatamente como alguém com mais de 70 anos deveria estar, ou seja, respeitável e antenada com os problemas do mundo, já que é notório o esforço da atriz em defender a ecologia, e sem um pingo sequer daquela sexualidade latente e da beleza hipnótica que a tornaram mundialmente conhecida. Tão diferente da atriz brasileira Suzana Vieira que, ao assumir sua adolescência tardia, também passou a agir como uma garotinha carioca sangue bom, com toda a futilidade e burrice que isso significa. Nada contra querer se sentir bem consigo mesmo, mas a "energia" da velhice deve se converter também em sabedoria, e não tornar a última etapa da vida uma alegoria irresponsável e vazia, à custa de botox e outros quejandos.

E foi sob as luzes da ribalta que aconteceu uma história ótima sobre a aceitação e a renúncia frente à velhice. Um ator interpretava durante anos a fio a mesma peça de Shakespeare. E seu papel na trama era de um velho. E todas as noites o ator se maquiava para se parecer com o personagem do bardo inglês. Ele ficou quase 20 anos encenando a peça e, àquela altura, a vida já o tornara um velho de verdade, mas ele continuou a se maquiar até o último dia de sua vida, quando foi apanhado por um ataque cardíaco fulminante em pleno palco.

A verdade é que não podemos fazer nada frente à iminente chegada da velhice, mesmo que ela ainda vá demorar um pouco, ou mesmo se ela já estiver devidamente acomodada em sua casa, fazendo-lhe companhia nas tardes quentes e solitárias.

Acho que o que dá pra fazer, com o intuito de tornar o fim da vida mais atraente, é ler um bom livro sempre que possível, acompanhar com interesse e afeto o crescimento dos netos, viajar sempre que a aposentadoria permitir e, de vez em quando, tomar uma Coca Cola gelada e em seguida dar uma bela arrotada na cara da velhice, que a essa hora estará tocando uma sonata de Bach no seu velho piano de cauda.

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