Entre a conveniência e a inconveniência

Jornal O Norte
29/09/2005 às 10:35.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:52

Maria Margareth Lopes Dumont *

No dia 7 de setembro de 2005 vimos lindos e cadenciados desfiles em homenagem à independência do Brasil, assistimos ao inconformismo declarado de alguns cidadãos brasileiros diante das atitudes  de alguns proeminentes políticos e, em rede nacional ouvimos o tradicional pronunciamento do Sr. Presidente da República Independente do Brasil.

Agora que o 7 de setembro passou, que o feriado acabou... penso que se perdeu uma ótima oportunidade para pensar. Pensar que a data pouco importa diante do processo historiográfico da independência brasileira.

Pensar que esse processo antecede ao ano de 1822 e que, sob muitos aspectos, ainda se acha dependente do poder, das conveniências, dos heróis do nosso imaginário e de uma deficiência educacional que insiste em imperar sobre o direito ao conhecimento no ensino brasileiro.

Como podemos festejar uma independência se somos ainda dependentes do processo secular da exclusão social e moral, chegando mesmo à eliminação física e sistemática do universo da cidadania e dos direitos humanos para muitos dos habitantes do território brasileiro?

É possível falar de independência se a historiografia relativa à escravidão negra contém lacunas, e que muito maiores são elas no que se refere ao escravismo em geral?

Se uma data precede em relevância ao processo, por que não lembrar que a estrutura que manteve o regime perdurou por mais 66 anos após a independência do Brasil em 1822? E que a escravidão indígena continuou sendo praticada no século XVIII e até no século XIX efetivamente?

Que triste fim! A escravidão indígena não acabou; os índios é que foram sumindo de suas terras, de nossa conveniente memória e de nossa independente historiografia... Afinal, que importa? A data de 7 de setembro de 1822 atestava que o Brasil pertencia doravante aos brasileiros civilizados e que, portanto, a expropriação de terras indígenas era legítima, pois, de colonizados passamos a colonizadores!

Segundo Leonardi Victor, a ordem e o processo positivista (com ou sem o endosso de alguns marxistas) foram se transformando na desordem e na ruína, não só de povos indígenas como também de sua própria floresta, cujo verde, paradoxalmente, ainda permanece como a cor predominante na bandeira brasileira. Porém, é importante observar que o verde de nossa bandeira é convenientemente uma das cores da dinastia Bragança.

Viva a independência!

Não quero, neste texto, ser uma mera redatora de denúncias éticas. Mas não posso, por outro lado – ao analisar a historiografia relativa de um determinado tempo - , deixar de procurar entender como foi que as idéias éticas, dominantes em determinados contextos históricos e culturais, acabaram influenciando o pensamento historiográfico a ponto de chegarmos ao ano de 2005 tão negligentes com nossa história.

Por que esquecer que as mulheres negras praticavam o aborto e o infanticídio no Brasil dos séculos XVI, XVII, XVIII E XIX,  devido à condição de ausência de liberdade? E que, nas áreas de mineração de ouro, os negros estavam submetidos a condições de vida e de trabalho tão duras que dificilmente deixavam geração?

Sete de setembro não foi, portanto, a culminância de uma efetiva emancipação nacional, mas o resultado de uma forte recusa da política das cortes de Lisboa. O regime monárquico e escravista independente de Portugal e bastante subordinado à Inglaterra. As classes dominantes brasileiras associaram-se ao processo de expansão do capitalismo, combinando sua dependência em relação a uns com sua dominação em relação a outros.

De acordo com Sílvio Coelho, o projeto de nação do grupo dominante no poder identifica a nação consigo mesmo (burguesia). Ainda segundo esse autor, é necessário construir uma outra visão de futuro, uma visão que considere como pluriétnica a realidade social brasileira.

Portanto, o Brasil não foi criado pelo encontro de brancos, negros e índios. A escravidão não gera encontros. Nem o genocídio.

E a independência?

Vamos aproveitar a ocasião para refletir sobre o significado desses cinco séculos de colisões culturais realizados sob a mira do progresso.

Infelizmente, a teoria da história só valoriza o intelecto, pairando a história econômica do Brasil acima das tragédias humanas. Uma simples sucessão de ciclos: o do pau-brasil, o da cana, o do ouro, o do café, o da borracha, mais ou menos lucrativos, dependendo da concorrência do mercado mundial.

E, nesse pensar, temos que lembrar que o Brasil também foi formado por gente que morreu enforcada e esquartejada em 1798, por ter pensado num país independente e sem escravidão (1798 – Inconfidência baiana – Salvador; ou em Pernambuco, durante a revolução de 1817, na qual algumas correntes políticas já se expressavam claramente a favor da República e da abolição da escravidão, 71 anos antes que essa viesse a ocorrer).

Intolerância e tolerância existiram juntas na história do Brasil e de qualquer outro país do mundo. O grande drama é que até hoje a primeira tem prevalecido sobre a segunda, na maioria das vezes.

No entanto, o que mais importa é sempre o futuro. Entre outras, esta é uma das grandes ingenuidades da historiografia edificante: estudar o passado procurando lições para o presente.

As descobertas cientificas no mundo moderno separam-se do modo de viver. Daí resulta uma espécie particular de selvageria, que está de posse da tecnologia.

Milhões de brasileiros não fazem parte do próprio processo produtivo, estão às margens da modernidade. No Brasil, é preciso considerar o tema da luta contra o racismo e contra as formas disfarçadas de separatismo cultural e laboral. Só assim surgirão uma nova ética e uma nova lógica de desenvolvimento, subordinadas às necessidades do homem e não às necessidades dos brancos ou dos aparelhos de estado.

Que ironia!

No dia 6 de setembro deste ano, meu filho de cinco anos chegou da escola usando um chapeuzinho de cartolina amarela e  montando num cavalinho feito com cabo de vassoura e uma garrafa de pet verde.

Viva a independência!

* Acadêmica do curso de História do Instituto Superior de Educação de Montes Claros

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