DOS AGENTES AO PROCESSO

Jornal O Norte
Publicado em 15/02/2008 às 15:00.Atualizado em 15/11/2021 às 07:25.

Anelito de Oliveira


Doutor em Letras pela USP, Mestre na mesma área pela UFMG, Professor do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Social, do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes e membro da equipe responsável pela organização do Programa de Mestrado em Direito, Políticas sociais e Cidadania das Faculdades Santo Agostinho.


Email: anelitodeoliveira@gmail.com



Parece inútil – e de fato é – perguntar aos contraventores que estão humilhando e abatendo pessoas inocentes por toda parte como se fossem bichos, promovendo um terror sem precedentes, pela razão dos seus atos. E, por outro lado, soa ingênuo, no mínimo, chamar a polícia para solucionar, de uma vez por todas, o problema da violência, questão que, claro, ultrapassa sua competência, embora muitos policiais, investidos de um ridículo heroísmo típico de filme hollywoodiano, pareçam entender que sua missão é mesmo salvacionista, conforme registrado pela mídia diária. Quem realmente deve ser inquirido, neste contexto em que a própria sociabilidade está ameaçada, em que se tornou perigoso exercer o direito fundamental de ir e vir, é o político, não uma entidade ideal, mas a real, essa que se apresenta à nossa frente: o ocupante de cargo eletivo, dirigente de agremiação partidária ou mesmo detentor de poder simbólico, qualquer que seja, atribuído – e confirmado a cada pleito eleitoral, na maioria dos casos – pela popu


lação, num gesto quase sempre espontâneo. Enquanto se mantiver na sociedade brasileira a idéia fixa de que os protagonistas desse filme sangrento são polícia e bandido, os políticos irresponsáveis, que vivem da desgraça alheia, continuarão rindo nos seus condomínios fechados, altamente seguros.



Mais que um caso de polícia, a violência, no estágio em que se encontra no país, é um caso de  política, e o seu devido enfrentamento exige a consideração de temas que foram estrategicamente  abandonados  (pelas elites políticas, não tenhamos dúvida) dos anos 1990 para cá, tornando-se, quando muito, objeto de preocupação sincera apenas de algumas entidades filantrópicas, ONGs, Fóruns de discussão, Escolas etc. Um desses temas é a cidadania, que há vinte anos, no embalo da Constituinte de 1988, estava na ordem do dia, era a “pedra de toque” de quase todos os debates, e acabou por ser dada como questão superada, deixou de ser enfocada com a devida atenção, sobretudo depois da queda de Collor de Melo, evento que muitos parecem entender (ainda) como afirmação decisiva de que, no Brasil, todos somos cidadãos, sabemos nossos direitos e deveres, sabemos dizer sim e também dizer não, enfim, decidir, nos limites do bom senso, sobre as questões sociais mais simples e mais complexas.  A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República – um cidadão, não mais um privilegiado – seria demonstração incontestável da aquisição tão desejada de uma consciência cidadã por parte do povo brasileiro. Com essa aquisição, deu-se e continua se dando por encerrada a discussão sobre o sentido de cidadania, sobre o que é ser cidadão, sobre o “ethos” que define o cidadão. 



Às margens do silêncio dos bem sucedidos do Brasil “redemocratizado”, tendo como estímulo a omissão daqueles que teriam o que ensinar, nasceu, cresceu, consumindo todo o lixo cultural que a televisão aberta disponibiliza, e está aí, em pleno desenvolvimento,  toda uma geração que ignora o vocabulário básico, digamos, da cidadania, “palavras-princípio”, diria Martin Buber,  de uma verdadeira consciência cidadã: humanidade, fraternidade, solidariedade etc etc. O vocabulário dessa geração está repleto de palavras que remetem, se bem reparamos, a uma certa desumanização do outro: “gado”, “rata”, “animal”, por exemplo. Não são poucos os adultos que, esforçando-se para ser contemporâneos dos seus netos (!), acham lindas essas palavras, que reconhecem nelas um fator de embelezamento da linguagem coloquial, mas é preciso não perder de vista aquele “grau do terrível” que Kant identificou como dimensão do belo: o que soa gracioso numa canção pode ser desastroso na vida comum, essa que experienciamos no dia a dia. Emerge dessa geração, que maltrata o outro naturalmente, que se gaba de ser “do mal”, parte considerável de perigosos contraventores, frios criminosos capazes de  matar os próprios pais, de queimar um índio, de espancar uma mulher num ponto de ônibus, para lembrar apenas alguns casos já meio esquecidos pelos pacatos cidadãos.



Portadores de um “logos” obliterado, de uma razão ensandecida, o que esses contraventores têm a dizer sobre seus atos não vai, nem poderia ir, além da instância pessoal, sendo de grande valia, sim, para alimentar arquivos judiciários, bem como para a compreensão da “psiquê” de criminosos, nada mais. O limite que se observa no seu depoimento, toda vez que um ou um bando são aprisionados, é semelhante àquele que também se observa no discurso da polícia que os reprime, o limite da imanência, pode-se dizer: as coisas se explicam por si mesmas. Ora, como bem sabe ou deveria saber esse especialista em generalidades, que é o político, aquele que teoricamente representa o todo citadino, tudo é resultado de um processo, e a banalização da violência, à qual aderem cada vez mais jovens e adolescentes, não poderia ser diferente. Resulta, de modo especial, de um processo de esvaziamento - e conseqüente desaparecimento - da cidadania como ideal a ser atingido em nome do bem comum, como forma de negar tudo aquilo que historicamente nos divide entre “senhores” e “escravos” e apegar àquilo que  nos une como brasileiros. Sem dúvida, os políticos que tanto contribuíram e têm contribuído para esse esvaziamento, com os incontáveis festivais de corrupção, têm o dever, neste instante, de liderar um movimento de reversão desse processo, recolocando a cidadania – seu resgate, sua construção, sua ressignificação – na ordem do dia.      


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