Augusto José Vieira Neto *
Em minha última visita a minha aldeia, o grande jornalista Artur Leite, meu fraterno amigo, sugeriu-me escrever sobre dom José, sabedor de que, quando militante na advocacia, lhe prestara serviços profissionais por longos anos.
Meu caro Artur Leite, permaneci sem saber como explicar, por muito tempo, por que aquele bispo diocesano, que eu mal conhecia, chamou-me ao Palácio episcopal, nos idos de 1971 do século próximo passado, e me solicitou aceitar ser advogado da Mitra diocesana. Logo eu, um esquerdista de quatro costados, oriundo da ação católica, ferrenho adversário da ditadura, com passagens pela polícia política e com direitos cassados!?
Confesso que o convite me causou perplexidade. Não só a mim, mas também à revista O Cruzeiro, que estampou, à época, reportagem de duas páginas em que discutia se as terras de Mirabela, doadas a São Sebastião pelo Alferes Lopes, eram ou não propriedade da Mitra e se poderiam ou não ser usucapidas (porque pertencentes à Santa Sé – Estado do Vaticano) pelos moradores da cidade. A inesquecível revista do intrépido Chatô ainda noticiou que o advogado da Mitra era comunista e que o daqueles que tinham interesses a ela contrários, meu saudoso colega de escritório Felisberto Costa Filho, era fervoroso católico apostólico romano.
Foi então, meu caro Artur, que consegui entender o porquê de minha contratação. D. José conhecia meu passado vicentino e era admirador da fé cristã de meu saudoso tio Augusto Getúlio Vieira. Ele pouco se lixou com as mentiras e o sensacionalismo da notícia. Simplesmente riu de tudo. Eu também.
Normalmente eu o visitava, em Palácio, uma vez por semana, para prestar contas de minhas ações e receber novas incumbências profissionais. E sempre vinha aquele gostoso café com pães de queijo, sob o lindo canto de um pássaro-preto que, quando D. José permitia, saía da gaiola, pousava em seu indicador, brincava um pouquinho com ele e voava, feliz, de volta à sua voluntária prisão. Como você vê, meu caro Artur, eu vivenciava, quase toda semana, uma linda cena franciscana.
Diziam que D. José gostava muito de dinheiro e que era agiota. Contavam até jocosas estórias sobre isso, especialmente relativas a pessoas que tomavam dinheiro emprestado a Sua Excelência, contando com mortes de sogros doentes, mortes essas que não ocorriam e só lhes aumentavam as dívidas. No entanto, a verdade, meu caro Artur Leite, é que D. José apenas não era um bispo trouxa, daqueles ingênuos em matéria econômica, que acreditavam na lábia daqueles que só se interessavam em levar vantagens à custa do patrimônio da igreja. Sabia, como ninguém, dos custos das obras sociais, da construção e manutenção dos prédios das paróquias, da manutenção dos seminaristas e de seus subordinados clericais. D. José simplesmente foi competente administrador de dinheiros e bens que considerava apenas um empréstimo de Deus, a serviço da fé cristã, sem alardear os sucessos de sua gestão.
Homem humilde, doutor em teologia, D. José foi grande filósofo e cultíssimo leitor e conhecedor de quase todas as grandes obras literárias que a humanidade produziu até seu tempo de existir. Embevecia-me conversar com ele sobre literatura, política e filosofia. Como o suguei e como aprendi coisas boas em nossa longa convivência amiga e sincera!
Meu caro Artur Leite, nosso Bispo D. José era tão evoluído que, a meu pedido, cedeu o prédio da antiga Congregação Mariana, na Coronel Prates, para que ali fosse montada uma réplica do antigo cabaré mineiro – de Montes Claros, que fascinou Carlos Drummond de Andrade – para a filmagem de cenas do filme de mesmo nome, de nosso laureado cineasta Carlos Alberto Prates Correia. Alguns beatos ficaram escandalizados. O filme fez sucesso e, logo depois, foi campeão em Gramado, para nossa alegria. Dei a boa notícia a nosso prelado maior, a quem agradeci, em nome do amigo cineasta, a cessão gratuita do prédio.
Foi D. José que facilitou tudo para que o governo estadual, por insistência do grande Reitor João Valle Maurício, desapropriasse e pagasse da forma mais rápida possível, o valor do terreno e do antigo prédio do seminário, para a construção do “campus” universitário. Eu era advogado de ambas as partes, da Universidade e da Mitra. Atuei sem ganhar um tostão, sequer, de honorários. Fizemos tudo isso, João Valle Maurício, D. José e eu, por amor a Montes Claros. E como valeu a pena! Hoje tenho o maior orgulho quando entro naquele imenso celeiro de cultura, aonde sempre me vêm à mente as felizes figuras de ambos.
Meu caro Artur Leite, quando recebi a notícia de minha aprovação no concurso de Juiz de Direito, em 1982, depois de comemorar até o dia amanhecer, com vários amigos, acordei, numa ressaca brava, por volta de uma hora da tarde, e fui, direto, ao Palácio Episcopal. Apertei a campainha e, por sorte, naquele dia e naquela hora, o próprio D. José me atendeu. Atrevidamente, quase ordenando, disse:
– Abra a capela do Palácio que eu quero rezar.
D. José, na maior calma, surpreso, nada me perguntou e simplesmente abriu a porta interna, pela qual entrei naquela Casa de Deus, em que permaneci por quase uma hora, chorando e agradecendo minha vitória, pedindo iluminação para os novos caminhos de minha vida. Só depois que saí é que lhe dei a notícia. Ele, largo sorriso bondoso, vibrando, me deu afetuoso abraço e foi logo ordenando aos servidores da cozinha do Palácio que preparassem um farto lanche para que nós também comemorássemos. Ainda pedi um vinhozinho de missa pra rebater e abrir o apetite, no que fui prazerosamente atendido. Foi então que me despedi de quase uma década, não daquela grande amizade, mas dos serviços profissionais prestados àquele grande cidadão brasileiro: Sua Excelência Reverendíssima Dom Dr. José Alves Trindade.
Que Deus o guarde!
* Professor universitário e juiz aposentado