Seguindo as normas dos pagés indígenas ou feiticeiros, cujo saber envolvem ocultismo, mistério e magia, a medicina, que há tempos usa métodos científicos comprovados em laboratório, também já usou do misticismo em seus domínios.
Quem padecia de um mal crônico, podia não ficar sabendo o nome da sua moléstia. Recebia o diagnóstico, quando este lhe era dado, e uma receita, quando havia. As orientações, algumas delas fruto da imaginação pessoal do médico, eram passadas como uma verdade sem direito a contestação.
A desculpa de o médico ter letra ruim vinha do fato de ele passar seis anos escrevendo tudo o que seus professores falavam, e depois, mais três a cinco anos de residência médica fazendo o mesmo, embora os métodos eletrônicos de gravação de hoje tenham se popularizado e poucos ainda se dão ao trabalho de copiar à mão. Dito isso, a letra ruim das receitas é uma forma de se utilizar do saber para oprimir e submeter o cliente, pois a aura de segredo torna a profissão médica mais valorizada, com toques mágicos e fantasiosos.
Pouco se ouvia explicações sobre como funcionava a doença e o tratamento no corpo humano. A maior parte das pessoas que possuía doenças crônicas acabava, por não entender o processo, abandonando os tratamentos. Pouco a pouco passaram a ver que o entendimento era possível, e que todos podiam compreender e opinar. Algumas doenças possuem mais de um tratamento e estes podem e devem ser apresentados ao paciente para que juntos decidam o que fazer. Um deles, por exemplo, é a reposição hormonal após a menopausa. A escolha é da paciente e não do médico. Este explica os riscos e benefícios e a mulher escolhe. Outro é o uso da sibutramina, o remédio sacietógeno, que ajuda a emagrecer. Será preciso assinar um termo de responsabilidade entre o médico e a pessoa que fará uso da droga.
Mas há quem se arvore de dono da vida e da morte do outro. Acredita estar ali na frente do doente como um juiz diante do réu. E fala de forma dura, nada humanizada a respeito da verdade. O que é real tem de ser dito. Mas de que forma? Isso quando quem está do outro lado aguenta o tranco.
Uma senhora me contou - vamos chamá-la de Luísa-, que tem hipertensão, colesterol e triglicérides altos há muitos anos. Apresentou entupimento das artérias coronárias, um quase infarto e foi submetida à angioplastia, com colocação de stents para desobstruir o local afetado. Tudo ia bem, com vida normal, quando aparece uma glicose alta, já em nível de diabetes. Por ser esta senhora muito disciplinada, cuidadosa e obediente, o endocrinologista falou que nada iria mudar. Era preciso seguir mais itens na dieta que ela já fazia, e o acréscimo de mais uma medicação. A família achou bom ir a Belo Horizonte ouvir outra opinião. Lá, o médico que a atendeu teve a seguinte atitude: escreveu ao lado do seu nome na ficha a palavra DIABÉTICA em letras graúdas e fez a seguinte afirmação: a senhora é diabética, e por isso todas as suas doenças vão piorar muito a partir de agora.
Luísa ficou apavorada, e dentro do desespero viu desencadear-se a síndrome do pânico. Largou o trabalho, não mais conseguiu dirigir e nem sair de casa. Foi preciso uma força interior muito grande para, depois de meses de tratamento psiquiátrico retornar a situação anterior a da fatídica consulta. Hoje, já recuperada, dirigindo, inclusive à noite, e fazendo tudo o que sempre fez, mantém-se bem controlada de todos os seus problemas, e falou assim: “até que ponto um médico tem o direito de rasgar o verbo, de falar com todas as letras e de forma cruel? Em que um gesto desumano destes poderá ajudar o paciente? Como pode ousar cortar o rosto do outro com uma navalha? Será preciso falar com palavras escritas em sangue?”
Difícil alguém se julgar insensato. No entanto é preciso dizer aos médicos, que sejam médicos, que sejam humanos, que digam a verdade de forma mais suave, porque do outro lado bate um coração, nem sempre forte. Noutras vezes há um cérebro sensível que não dá conta de elaborar num pulo, todo o significado daquilo que está por vir.
Educação e civilidade cabem em todo o lugar.
*Mara Narciso é médica e jornalista diplomada - 05 de novembro de 2011