Confissões de um ex-viciado II

Jornal O Norte
Publicado em 07/03/2008 às 10:36.Atualizado em 15/11/2021 às 07:27.

Paulo Roberto Sarmento


Artista plástico e articulista



“Os olhos de quem zomba do pai ou de quem despreza a obediência à sua mãe, corvos no ribeiro os arrancarão e pelos pintãos da águia serão comidos”.


Provérbios 30:17



Relatar nosso passado é como realizar uma escavação. A cada momento nos vêm a memória fatos extraordinários que marcaram nosso caráter dando sentido ao curso de nossas vidas, do ponto de vista positivo ou negativo. Para mim é impossível falar do meu pai, sem relembrar o saudoso “Tonico” meu avô, velho homem conhecido e respeitado por todos pela sua calma, serenidade, paciência e retidão invejável. Aprecio muito ouvir pessoas idosas que conheceram meu avô e foram amigos do meu pai, contarem casos decorridos tanto  na vida de um como do outro. Em certa ocasião ouvi uma história sobre uma pilantragem praticada por mim desrespeitando o velho “Tonico”, quando eu tinha apenas seis anos de idade. Naquela época, entre 1949/1950 meu avô tinha sua oficina de concertos e fabricação de utensílios domésticos do tipo de copos, chaleiras, bandejas, lamparinas e candeias, aproveitando latas vazias de querosene e outros produtos. Tudo ficava em sua própria casa na rua Padre Teixeira Nº 107, (ao fundo da matriz). Em  cômodos da frente, de um lado ficava meu avô e do outro o meu pai, cada um exercendo a sua função especifica dentro de suas “tendas” e entre elas havia  o corredor que  passava pelos quartos, salas, cozinha até atingir o extenso quintal arborizado com pés de manga, goiaba, abacate, jabuticaba e muitas outras. Bem no fundo onde quase ninguém via, ficava camuflada a “privada”.



Naquela época existia um laço de união e amizade tão forte nas famílias que faziam tudo no mesmo lugar. Trabalhavam lado a lado, comiam na mesma mesa e dormiam na mesma casa. Viviam em intensa comunhão uns com os outros, até mesmo com profissões diferentes. Meu pai era seleiro e meu avô era ourives (confeccionava brincos, anéis, pulseiras e alianças), era também ferreiro e armeiro (concertava e fabricava armas: espingardas, revolveres, garruchas), reformava guarda-chuvas, sombrinhas, relógios, vitrolas, etc. O  velho cujo nome era Antônio Alves Sarmento, “quebrava o galho” de todo mundo em Montes Claros, ainda concertava máquinas de costuras também,  era muito inteligente e habilidoso. Creio que o meu vô concertava até mulher sem vergonha e homem vagabundo só de olhar para eles. Ele era um homem muito sério, a ponto de valorizar, observar e respeitar até mesmo os sentimentos e as necessidades de uma criança por mais pequena que fosse.



Realmente fui um guri muito levado e bota levado nisso, pois, me contaram e não é mentira, porque o fato já foi confirmado por diversas pessoas e consta que em certa ocasião, o meu avô estava abaixado,  serrando um parafuso preso ao torno de banca, cheguei bem perto dele, segurei-lhe a ponta do bigode, puxei com força e gritei, Toniquiiinho! Logo após saí em disparada pelo corredor da casa e ele então, furioso, cuspindo fogo de raiva veio atrás para me pegar, meu pai então, atravessou na frente dele e disse-lhe em voz alta, esbravejando: pra você bater nele tem que passar por cima de mim. Certamente o pai parecia um gigante na frente do meu avô. E o velho então murchou as orelhas e voltou para o seu lugar de costume. Eu hoje reconheço que estava errado por desrespeitar o velhinho (estava com 6 anos) naquela época. Meu pai devia ter deixado ele me dar uma surra. Mas não, o que ele fez foi passar a mão na minha cabeça. Considero que o erro dele, embora seja o meu pai, foi maior que o meu. Aquilo para o meu avô deve ter sido motivo de humilhação muito grande. A Bíblia adverte sempre sobre o mau comportamento dos filhos e até ensina a maneira como se deve corrigi-los, observem: “A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela”.Provérbios 22:15.



Meu pai um homem tranqüilo, meu avô o pai da paciência. Uma família unida e pacifica, mas, o Diabo naturalmente ali, utilizando de uma criança, no caso eu, quis provocar uma intriga entre pai e filho, que por pouco poderia ter generalizado uma conseqüência grave. Meu pai era conhecido pelo pseudônimo de “Prisco”. Certa feita, eu curioso perguntei a uma tia minha e irmã dele, que também era minha madrinha de batismo, tia me conta de onde provém o apelido do meu pai, porque o chamavam de “Prisco”? Ela respondeu: foi porque ele nasceu no dia de Santa Prisca, meu filho. Então, eu disse: interessante, não sabia que existia essa santa.



O “Prisco” como eu também o chamava, me amava tanto e me tratava com um carinho tão especial, que algumas pessoas me contam que ele me carregava o tempo todo nos braços. Tudo o que eu queria ele providenciava para satisfazer a minha vontade. Depois que ele morreu, foi como diz o velho ditado: “Acabou-se o que era doce”.



Sofri muito pela perda do meu pai. Caí em profunda depressão. Pela robustez  e vitalidade dele, eu com a minha fantasia de criança, supunha e até afirmava que meu pai era imortal. Achava que iria tê-lo para sempre. Os pais dos outros colegas podiam morrer, era natural, mas o meu pai não. Com a morte dele foi como se o meu sonho tivesse chegado ao fim. Acabara-se a minha cerca de proteção, minha muralha havia caído por terra. Eu aprontava e meu pai me defendia, mas, e agora?



Eu que antes andava de cabeça levantada e olhar altivo, de uma hora para outra me vi à mercê de tudo e de todos. Senti-me  deprimido, humilhado e desprezado. Compreendo profundamente a situação de desesperadora de uma criança que fica sem o pai ou a mãe. Crianças assim, são realmente seres que precisam de uma atenção e um carinho muito especial. Elas são como náufragos, é como se o barquinho delas houvesse afundado. São pessoas que devido a experiência sofrida e dolorosa, adquirem uma sensibilidade fantástica pelo fato de tentarem com todas as suas forças superar o conflito íntimo que elas trazem dentro da alma dilacerada. A capacidade e a inteligência afloram em toda plenitude. O anseio de superar a crise pela perda, é tão grande que elas  são capazes de fazer ou criar situações incríveis a fim de despertar a atenção e interesses dos mais céticos. Desta forma  se desenrolou o início da minha formação, num clima de tensão. Com muita energia, capacidade, inteligência e sem nenhuma  orientação ou instrução. De situações assim procedem os delinqüentes, meninos de rua e até marginais e bandidos. Graças a Deus não me tornei como um deles, mas, quase.



Alguns meses depois, ao completar oito anos, veio a internação  num colégio cristão  em Belo Horizonte, cognominado “Lar dos Meninos” na próxima crônica darei seqüência  sobre o assunto.



“O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor”.


Provérbios 16:1

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por