Mara Narciso
Médica e jornalista, que tem o azar de morar a 50 metros do Carnamontes, há 12 anos.
Nem é questão de "como eu vou fazer para dormir". Além de irrelevante, a questão individual é ridícula dentro do interesse monetário e urgente de toda uma população de quase 400 mil almas - logo saberemos ao certo após a contagem do IBGE, ávida pelo carnaval temporão, desesperada por dançar ao som (?) do magnífico gênero musical tipo exportação chamado axé.
Fonte indiscutível de divisas, e de um sem número de empregos temporários, a importância do Carnamontes na economia do município é incontestável. O furor das pessoas em busca dos famosos abadás de gosto horripilante - quem sou eu para dizê-lo de gosto discutível, é prova incontestável de que o povo de Montes Claros urge, precisa, depende visceralmente desse adereço, dessa "festa", dessa "cultura".
A movimentação e as mudanças que se impõem no local nem de longe são pensadas como algo que perturba invade e agride com violência de bárbaros os moradores da área. Isso nos preparativos, quando estão mudando o trânsito, levantando tendas, construindo arquibancadas e camarotes de luxo para vender a altos reais a quem pode usufruir dessa maravilhosa "festa", além do mau cheiro e da sujeira habitual da ressaca.
Dirão que, no final a baderna é para todos, pois a turma da pipoca também pode pipocar, ser levada pela multidão, ser pisoteada, levar um tiro ou até mesmo ser estuprada num dos terríveis banheiros químicos, sem luz e sem papel, e muitas vezes sem chave, fato já acontecido e do conhecimento de todos.
Você mora perto e tem uma festa alegre e contagiosa (não contagiante), perto de você? Deixe a sensatez de lado e venha aproveitar, venha dançar, venha curtir esse som mavioso, a pura ginga e malemolência do povo baiano. Larga desse mau-humor de gente velha e rabugenta e venha aproveitar a vida, pois a vida bem aproveitada é essa aqui, no meio da algazarra, da folia, do barulho acima de toda e qualquer medição digna de ouvidos humanos em termos de decibéis. Deixe a implicância, e venha, pois todos estão na balbúrdia.
Quem mora no Bairro Jardim São Luis, ou no Morada do Sol e imediações não tem o direito, durante duas tardes e duas noites, nem mesmo de ficar em casa. Nesse período nem se pensa em conversar, ouvir música, ver TV, pensar. Tudo fica impedido, porque os preparativos ensurdecedores na passagem do som que duram diversas horas, e depois o esgar dos "cantores" ferem os tímpanos e a dignidade de quem está por perto. Para quem está sadio, a estupidez generalizada dos estrondos trás um desconforto de tal intensidade que a loucura invade todo o seu ser. É impossível controlar o nervosismo e a irritabilidade. E o que dizer das pessoas idosas, doentes, com dores, já sabidamente com dificuldade de conciliar o sono, ou os oficialmente loucos e as crianças?
Quando o estrondo da segunda parte começa, mesmo com todas as janelas fechadas, assim como portas, um ar-condicionado ligado para abafar o barulho infernal, e ainda o inútil tapa-ouvido, a loucura entra para fazer seu estrago, sem nenhum respeito. As janelas vibram como se houvesse um terremoto, e essa vibração vai ao extremo quando o helicóptero sobrevoa a área. É desumano.
Ninguém vai ler isso, ninguém vai ligar para isso, ninguém vai publicar isso, ou vai dar a menor importância para os vizinhos e eternos penitentes que passam por isso todos os anos, pois há um grupo endinheirado, e hoje, depois de terminada a festa, ainda mais rico, já que está com mais muitos mil reais em suas contas bancárias. A vizinhança insone da equivocada "festa" está tentando ordenar o pensamento para a nova semana, humilhados, tratados com descaso pelos organizadores, pelas autoridades e demais órgãos do poder constituído. Oficialmente o barulho parou após 1 hora e 30 minutos da manhã, mas a perturbação continua.
Reclamar é de graça, aos ganhadores as batatas, e aos perdedores resta espernear, de preferência em silêncio, para não incomodar os multimilionários donos do Carnamontes, que estão descansando agora.