Vivemos em uma era de narrativas em conflito. A verdade, antes fundamento das relações humanas e sociais, tem sido relativizada, manipulada e, por vezes, tratada como inconveniente. Entre discursos públicos enviesados, campanhas ideológicas, cancelamentos seletivos e guerras culturais, a pergunta que se impõe é: como deve agir o cristão diante da tensão entre verdade e engano, especialmente em tempos de confronto? A tradição bíblico-reformada oferece luz nesse debate, ao distinguir claramente entre o falso testemunho, que é pecado, e o engano estratégico, que pode ser legítimo em contextos específicos de guerra ou opressão.
O nono mandamento, “não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êx 20.16), condena a mentira que atinge o outro com violência. Ela destrói a confiança, a justiça e a vida comunitária. É por isso que a Escritura denuncia com tanta severidade a língua mentirosa e a testemunha falsa (Pv 6.16–19; Pv 19.5). Para a ética reformada, a verdade é um bem coletivo, sem o qual nenhuma civilização pode subsistir. A mentira deliberada é, em última instância, uma forma de guerra civil — traição contra aquele com quem se deveria viver em paz.
Contudo, a Bíblia também apresenta situações nas quais o engano não é condenado, mas abençoado. Quando as parteiras hebreias mentem ao Faraó para preservar a vida dos meninos (Êx 1), quando Raabe engana os soldados para proteger os espias (Js 2), ou quando Davi finge loucura para escapar da morte (1Sm 21), o engano não é pecado — é piedade. Em todos esses casos, a mentira não é usada para ferir o próximo, mas para proteger o inocente diante de uma ameaça injusta. O princípio bíblico é claro: o dever de dizer a verdade cessa quando a relação de aliança é rompida por agressão deliberada.
A guerra, como reconheceu o estrategista Sun Tzu, é sustentada pelo engano. E as Escrituras não ignoram isso. Em Josué 8, o próprio Senhor ordena que os israelitas usem uma emboscada para derrotar Ai. Trata-se de uma estratégia em que o inimigo é induzido ao erro — mas não por covardia, e sim para evitar mais derramamento de sangue. A astúcia nesse caso não é traição; é justiça disfarçada para proteger vidas.
Isso não autoriza o cristão a usar o engano levianamente. Em tempos de paz, a verdade deve ser proclamada com rigor, mesmo quando for desconfortável. Enganos “brancos”, meias-verdades e manipulações retóricas são violações do mandamento. Como afirmou Thomas Watson, faz pouca diferença se carregamos o diabo na boca ou no ouvido. Eufemismos, distorções e omissões são formas sofisticadas de mentira — especialmente quando usadas para preservar reputações ou controlar narrativas.
Mas a vida é mais complexa do que dualismos morais simplistas. Há situações de guerra cultural, perseguição ideológica e embates espirituais nos quais a astúcia se torna necessária. Não se trata de manipular, mas de proteger. O exemplo de Natã ao confrontar Davi é clássico: o profeta contou uma parábola enganosa para conduzir o rei ao arrependimento (2Sm 12). O engano não era fim em si mesmo, mas instrumento de restauração. O mesmo se aplica a iniciativas modernas, como investigações em clínicas de aborto por meio de câmeras ocultas. São ações que envolvem ocultação estratégica, sim — mas voltadas para expor a injustiça, não para promovê-la.
A chave da ética cristã, nesse ponto, está na motivação e no alvo. O engano é pecado quando visa proteger a si mesmo, esconder a iniquidade ou prejudicar o próximo. Mas pode ser moralmente legítimo quando usado para frustrar o mal, proteger inocentes e preservar a verdade maior. O cristão, portanto, deve discernir os tempos: em paz, diga a verdade com clareza; em guerra, lute com sabedoria — sem trair o Deus da verdade.
No campo espiritual, essa lógica também aparece. O apóstolo Paulo afirma que a sabedoria de Deus foi oculta dos “príncipes deste mundo” (1Co 2.7–8), de modo que, ao crucificarem o Senhor da glória, foram enganados por sua própria soberba. Deus escondeu seu plano de redenção à vista de todos. Essa é a “estratégia divina” que confunde os poderosos. Em tempos de guerra moral e espiritual, o povo de Deus pode e deve agir com esse tipo de discernimento.
A cultura contemporânea, muitas vezes, exige que os cristãos falem tudo, a qualquer custo, mesmo quando isso possa servir ao mal. Ao mesmo tempo, tolera a mentira institucionalizada se ela vier travestida de boas intenções. Contra essas distorções, a ética bíblico-reformada responde com equilíbrio: devemos amar a verdade a ponto de não vendê-la — mas também devemos amar a justiça a ponto de protegê-la com sabedoria.
Dizer a verdade continua sendo dever inegociável. Mas há tempos em que falar, ou calar, ou mesmo desviar uma pergunta, pode ser expressão da própria fidelidade. O cristão, nesse cenário, não é ingênuo nem cínico.