Em um tempo em que a infância deveria ser um espaço protegido, a cultura contemporânea tem mostrado sinais alarmantes de um fenômeno crescente e perigoso: a adultização precoce de crianças. Meninos e meninas são pressionados a adotar comportamentos, hábitos, estilos e discursos que pertencem ao universo adulto — muitas vezes sem maturidade emocional, discernimento ou estrutura para compreendê-los. Essa exposição precoce, somada à erotização infantil, à mercantilização da imagem e à falta de limites, revela uma crise profunda na forma como enxergamos a criança na sociedade atual.
A tradição bíblico-reformada, porém, oferece uma perspectiva sólida e contracultural: a criança é criatura feita à imagem de deus, digna de cuidado, ensino, afeto e proteção. Ela não é um pequeno adulto, nem tampouco um ser neutro à espera de autodefinição. Ao contrário, é um ser em formação, chamado a crescer na graça, no conhecimento e sob a orientação amorosa de pais, mestres e comunidades de fé.
Ao longo das Escrituras, a infância é vista com dignidade e responsabilidade. Jesus, ao ser abordado por seus discípulos sobre quem seria o maior no reino dos céus, toma uma criança e a coloca no centro, dizendo: “em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 18.3). O gesto de jesus não é simbólico apenas — é teológico. Ao afirmar que o reino pertence aos pequenos, jesus revela que a humildade, a confiança e a dependência — características da infância — são virtudes do cidadão do céu.
Mais adiante, ele declara com severidade: “qualquer que fizer tropeçar a um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse afogado na profundeza do mar” (Mt 18.6). É difícil encontrar palavras mais fortes vindas do salvador. Isso demonstra o zelo de cristo com os pequenos — não apenas em termos espirituais, mas também morais, físicos e sociais. Para ele, a criança não deve ser manipulada, usada ou exposta a escândalos, mas cuidada com temor.
O apóstolo Paulo, escrevendo aos efésios, exorta os pais: “e vós, pais, não provoqueis vossos filhos à ira, mas criai-os na disciplina e na admoestação do senhor” (Ef 6.4). Isso implica que crianças não devem ser tratadas como adultos — nem emocional, nem cognitivamente. Elas precisam de limites, sim, mas também de ternura e direção. A educação bíblica é um caminho de formação gradual, não de imposição cultural que sufoca o tempo da infância.
O problema da adultização infantil, no entanto, não se limita ao ambiente familiar. A cultura midiática contemporânea, especialmente por meio da publicidade, das redes sociais e da indústria do entretenimento, impõe às crianças padrões estéticos, preocupações com imagem e sexualidade, e até ideologias de identidade que são próprias da maturidade. A criança que deveria brincar, explorar, perguntar e aprender, agora é transformada em “influenciadora mirim”, objeto de curtidas e audiência. A imagem infantil se tornou produto, e o mercado tem se aproveitado disso com avidez.
Essa lógica é perversa. Ela não apenas acelera o tempo da criança — ela rouba sua humanidade. A criança que é tratada como adulta antes da hora carrega pesos que não consegue suportar. Psicólogos, educadores e sociólogos já têm alertado sobre os efeitos disso: ansiedade, depressão precoce, transtornos alimentares, baixa autoestima e dificuldades de relacionamento. Mas a Bíblia já advertia sobre o dano causado quando se despreza o tempo de formação: “instruir o menino no caminho em que deve andar” (Pv 22.6) pressupõe que há um caminho próprio, uma rota pedagógica que respeita o tempo, o corpo e a alma da criança.
A tradição reformada foi uma das mais atentas a essa dimensão. A valorização da catequese infantil, do ensino doméstico e da formação espiritual desde cedo tem raízes nos reformadores. Martinho Lutero escrevia catecismos para pais ensinarem seus filhos. João Calvino organizava a instrução dos jovens como parte integrante da missão da igreja. Abraham Kuyper, no século XIX, insistia na criação de escolas cristãs que respeitassem o desenvolvimento infantil em todas as suas dimensões. O pressuposto era claro: se queremos uma sociedade estável, começamos pelas crianças — e as tratamos como tal, não como consumidores, militantes ou adultos em miniatura.
Do ponto de vista bíblico-reformado, proteger a infância é um ato de justiça, de misericórdia e de fidelidade ao criador. Cada fase da vida tem seu propósito, e a infância não deve ser suprimida por pressões culturais, ideológicas ou mercadológicas. O papel dos pais, da igreja e da sociedade é formar, não deformar. É cuidar, não explorar. É dar base, não sobrecarga.