A grandeza de uma sociedade pode ser medida pela forma como ela trata os mais fracos, aqueles que mais necessitam. O Cristianismo, desde seu início, foi assim. Ele procurava tratar as pessoas menos favorecidas, não porque elas tivessem algum mérito para salvação, mas porque essa atitude deveria fazer parte da pauta cristã como reflexo da própria obra de Deus por seu povo.
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mateus 5.7). Esse foi um dos primeiros ensinos de Cristo para seus discípulos. De todas as bem-aventuranças, essa possui uma lógica que parece quase circular: aqueles que demonstram misericórdia já foram transformados por ela. Ao mesmo tempo, a prática da misericórdia não é apenas uma resposta à bondade divina, mas também um canal por meio do qual continuamos a experimentar a abundância da graça de Deus. Esse ciclo virtuoso define o verdadeiro cristão, cuja vida é marcada pela compaixão ativa, reflexo da misericórdia de Deus manifesta em Cristo.
A misericórdia de Deus por nós é um exemplo perfeito. O pecado nos separou de nosso Criador, mas ele, em sua compaixão infinita, não nos abandonou ao nosso destino. Pelo contrário, “sendo nós ainda pecadores, Cristo morreu por nós” (Romanos 5.8). Deus, o justo, tornou-se o Justificador, estendendo sua misericórdia a um povo que jamais poderia merecê-la.
A misericórdia de Deus nos alcança antes que tenhamos a chance de demonstrá-la a alguém. Esse é o ponto de partida. Em nossa caminhada cristã, a prática da misericórdia se torna uma evidência de que fomos transformados por ela. João Calvino, ao comentar as bem-aventuranças, destaca que a verdadeira fé sempre produz frutos. A misericórdia é um desses frutos, indicando que o Espírito Santo está trabalhando em nós.
No mundo de hoje, dominado pelo individualismo, pela competição e, muitas vezes, pela indiferença ao sofrimento do próximo, ser misericordioso é contracultural. Significa renunciar a nossos direitos, tempo e recursos para cuidar de pessoas que, muitas vezes, não têm nada a oferecer em troca. A misericórdia nos leva a enxergar no rosto do outro a imagem de Deus, ainda que distorcida pelas marcas do pecado.
Jesus não nos chamou a sermos misericordiosos apenas com quem nos é simpático ou com quem consideramos “digno” de compaixão. Pelo contrário, ele nos exorta a amar até os inimigos, a orar por aqueles que nos perseguem e a abençoar os que nos amaldiçoam (Mateus 5.44). Isso é possível porque Cristo já fez isso por nós.
A prática da misericórdia pode assumir muitas formas: 1) no perdão: não há expressão mais poderosa de misericórdia do que perdoar quem nos ofendeu. O perdão não ignora o erro, mas escolhe não retribuir mal por mal. É um reflexo direto da misericórdia que recebemos de Deus (Efésios 4.32); 2) na assistência ao necessitado: seja ajudando um amigo em dificuldade ou estendendo a mão a um estranho, a misericórdia encontra expressão na generosidade; 3) na paciência com os fracos: a misericórdia também se revela na disposição de caminhar ao lado dos que lutam, sem desprezo ou impaciência. Afinal, Deus tem sido longânimo conosco.
É curioso notar que Jesus associa a prática da misericórdia ao alcance dela: “Porque alcançarão misericórdia”. Isso não significa que ganhamos o favor de Deus por nossos atos. Pelo contrário, é o próprio Deus quem nos capacita a sermos misericordiosos, e ao fazermos isso, somos continuamente lembrados de sua graça.
A parábola do credor incompassivo (Mateus 18.21-35) ilustra o oposto dessa dinâmica. Nela, Jesus relata a história de um homem que teve uma dívida astronômica perdoada, mas que, em seguida, se recusou a perdoar uma pequena quantia devida por outro. O Senhor dessa parábola, ao repreender o servo ingrato, deixa claro que quem não demonstra misericórdia prova que nunca compreendeu a profundidade da misericórdia que recebeu.
Ao proclamar que os misericordiosos são bem-aventurados, Jesus está oferecendo mais do que uma instrução moral. Ele está revelando uma característica essencial do reino de Deus. O Reino não pertence aos que acumulam riquezas ou buscam grandeza, mas aos que têm um coração compassivo.
Que possamos viver de forma a refletir aquele que nos alcançou com sua bondade e amor. Afinal, a misericórdia não é apenas uma virtude; é a marca inconfundível de quem pertence ao Reino.