Johan Huizinga escreveu, há quase um século, que vivíamos sob “as sombras do amanhã”. Não era só uma metáfora sombria para os anos que antecederam a Segunda Guerra. Era um diagnóstico. Ele dizia que havia uma doença circulando, não no corpo — mas na alma da civilização. Uma febre silenciosa que fazia a cultura perder o rumo, as palavras perderem o peso e as pessoas perderem o senso de proporção. Chamou isso de “enfermidade espiritual do nosso tempo”. Se fecharmos o livro e ligarmos a televisão, o rádio ou o feed de notícias, temos a sensação incômoda de que aquele futuro do qual ele falava ainda é o nosso presente.
Charles Taylor, filósofo canadense, leu o século XX e XXI por dentro do ser humano. E, se Huizinga observou o cenário, Taylor tentou abrir o peito do paciente. Perguntou-se: o que sustenta nossa identidade quando todos os pilares — fé, tradição, política, família — parecem tremer? O que sobra quando o “eu” se torna o último juiz da verdade e o mundo se reduz ao espelho da nossa própria vontade? Ele chamou de “self moderno” essa criatura que tenta viver sem um horizonte maior, mas que, ao fazê-lo, sente-se ao mesmo tempo livre e perdida.
É curioso como os dois se encontram. Um caminhou pelos corredores da história; o outro, pelo labirinto da consciência. E, sem combinarem, chegaram à mesma sala escura.
Huizinga via um cansaço cultural. Ele falava de sociedades que, mesmo rodeadas de conhecimento, distraem-se com estímulos, slogans, ruídos. De uma infantilização coletiva — o “puerilismo” — que troca permanência por instantaneidade. É fácil ler isso como crítica ao consumo, à política-espetáculo, à sede de novidades que dura menos que uma curtida. Mas é também uma fotografia delicada do que se passa dentro das pessoas: estamos lotados de informação e famintos de sentido.
Taylor, por sua vez, não acusa — ele tenta entender. O sujeito moderno acredita que precisa ser autêntico, fiel a si mesmo. E esse ideal tem beleza. Quem ousaria dizer que não devemos buscar coerência entre o que sentimos e o que vivemos? O perigo é quando a autenticidade se torna uma ilha: fechada, isolada, impermeável. Quando o “eu” se transforma não em porto, mas em prisão. Quando ser fiel a si mesmo significa não aprender com ninguém, não herdar nada, não responder a nada que não seja nossa própria voz.
Talvez a questão seja esta: como ser inteiro num mundo fragmentado? Como manter convicções sem transformá-las em armas? Como dialogar sem dissolver o que somos? É aqui que o pensamento dos dois toca nossa vida cotidiana — seja você cristão, judeu, ateu, espírita, budista ou simplesmente alguém tentando manter o equilíbrio.
Huizinga nos alerta para o risco de perdermos a memória coletiva. Quando tudo vira presente instantâneo, o passado torna-se peso inútil. Perdemos referências, perdemos contraste, perdemos história. Taylor acrescenta que, sem história, o eu flutua. Não sabemos quem somos porque não lembramos de onde viemos. E isso nos torna vulneráveis — à propaganda, aos extremismos, às certezas fabricadas.
Não se trata de restaurar um passado ideal que nunca existiu. Não é nostalgia o que está em jogo. É raiz. Árvore sem raiz não floresce — nem mesmo no asfalto. Huizinga diria que uma sociedade só sobrevive se continuar criando cultura, e não apenas consumindo-a. Taylor lembraria que uma identidade só se sustenta se estiver ligada a fontes morais profundas, e não apenas a impulsos momentâneos.
E então chegamos a nós — leitores de jornal em 2025, atravessando redes, crises, eleições, discussões que começam e terminam em minutos. Talvez a pergunta mais urgente seja esta: qual é a fonte que alimenta nossa vida interior? A que ideias somos fiéis quando ninguém está olhando? Que histórias carregamos, quais abandonamos, quais construímos?
Huizinga desconfiava do otimismo ingênuo. Taylor desconfia do pessimismo desesperado. Entre os dois, talvez exista um caminho: olhar para o mundo com lucidez, mas não com cinismo. Reconhecer que algo está doente, mas crer que pode haver cura. Não uma cura que caia do céu pronta, mas uma cura que nasce do cuidado — consigo, com o outro, com o mundo.
É possível que estejamos mesmo vivendo sob sombras. Mas sombras só existem quando há luz.
E talvez o nosso trabalho — como indivíduos, comunidades, culturas — seja exatamente este: não deixar a luz extinguir-se dentro de nós. Guardar memória, cultivar profundidade, ouvir antes de responder. Lembrar que autenticidade não significa isolamento. Que tradição não é prisão. Que identidade não é trincheira.
Que o amanhã pode ser menos sombrio se aprendermos, enfim, a habitar o hoje com mais verdade, mais escuta e mais humanidade.