Wendell Lessawendell_lessa@yahoo.com.br

Estado ou Igreja?

Publicado em 09/04/2025 às 19:00.

A relação entre Estado e Igreja tem sido um tema debatido por séculos, mas poucos movimentos tiveram o impacto duradouro dessa relação como a Reforma Protestante, especialmente a vertente calvinista. Ao longo da história, as diversas interpretações sobre o papel da Igreja e do Estado em sociedade moldaram as estruturas políticas e religiosas de diferentes países. A reforma de João Calvino, iniciada no século XVI, trouxe consigo uma visão específica sobre essa interação, que, embora tenha sido fruto de um contexto medieval específico, ainda ressoa no pensamento político e religioso contemporâneo.

O contexto histórico da Reforma Protestante foi marcado por uma profunda crise dentro da Igreja Católica e pela crescente insatisfação com as práticas e dogmas da instituição. A abordagem calvinista, que se originou nos ensinamentos do teólogo francês João Calvino, se distanciava das ideias de outros reformadores, como Martinho Lutero, principalmente no que diz respeito à relação entre Igreja e Estado. Enquanto Lutero defendia uma distinção entre o domínio espiritual e o domínio temporal, Calvino ofereceu uma perspectiva mais integrada, que buscava uma convivência harmônica entre as duas esferas, mas com um forte controle da Igreja sobre as questões espirituais.

Para entender a visão de Calvino, é essencial compreender a sua concepção de governo e de autoridade. Em sua obra Institutas da Religião Cristã, Calvino afirmava que tanto o governo civil quanto a Igreja eram instituídos por Deus para cumprir diferentes papéis na ordem divina. O governo civil, segundo Calvino, tinha como função principal garantir a paz e a justiça na sociedade, enquanto a Igreja deveria garantir a pureza da fé e a salvação das almas. Embora ambos os poderes tivessem origens divinas, Calvino não via a autonomia de cada um como algo absoluto.

A grande inovação do pensamento calvinista foi a ideia de que o Estado deveria apoiar a Igreja, ou pelo menos não prejudicar sua missão espiritual. Essa visão contrastava com a concepção medieval da Igreja como uma instituição acima do poder temporal, um legado da aliança entre o Papado e as monarquias da Idade Média. Calvino defendia que, embora o Estado não devesse intervir diretamente nos assuntos religiosos, ele deveria proteger a Igreja e garantir que a verdadeira fé fosse ensinada e praticada. Em sua visão, o poder civil não estava acima da Igreja, mas deveria ser orientado por ela em seus princípios cristãos.

Calvino acreditava que o poder do Estado deveria ser limitado pela Palavra de Deus. Para ele, a autoridade civil e a religiosa tinham a responsabilidade conjunta de assegurar uma sociedade justa e piedosa. A relação entre as duas esferas deveria ser de cooperação, com a Igreja orientando os governantes e o Estado garantindo que a liberdade religiosa fosse preservada. No entanto, isso não significava uma submissão irrestrita do Estado à Igreja, mas sim uma harmonia entre os dois, cada um cumprindo o papel que Deus lhes havia atribuído.

No entanto, a visão de Calvino sobre a relação entre Igreja e Estado era complexa. Embora ele não fosse defensor de uma teocracia, ou seja, da ideia de que o governo civil deveria ser controlado diretamente pela Igreja, ele via o poder civil como uma extensão da autoridade moral da Igreja. Em sua cidade de Genebra, onde implantou um sistema de governo protestante rigoroso, Calvino estabeleceu uma teocracia prática, com o governo civil sob forte influência dos líderes religiosos. Em Genebra, o Conselho de Anciãos, composto por líderes eclesiásticos, tinha grande poder sobre a política e as leis civis. Essa experiência foi vista por muitos como uma tentativa de criar uma sociedade cristã ideal, onde as leis e a moral cristã estivessem profundamente entrelaçadas.

Essa experiência genebrina gerou debates sobre os limites da autoridade religiosa sobre o Estado. Para alguns, Calvino tinha criado uma teocracia disfarçada, onde a Igreja controlava de fato o governo, uma crítica que persiste até hoje em algumas análises históricas. Outros, no entanto, defendem que Calvino nunca pretendia um controle absoluto da Igreja sobre o Estado, mas sim uma interdependência entre as duas esferas, cada uma com sua área específica de autoridade.

Outro aspecto importante da visão calvinista sobre o Estado e a Igreja é a ênfase no conceito de “vocação”. Calvino acreditava que a vida cristã não deveria se limitar ao âmbito religioso ou à Igreja, mas se estender a todas as áreas da vida, incluindo o trabalho secular. Para ele, os cristãos tinham a responsabilidade de viver de acordo com os princípios divinos em todas as suas ações, incluindo na política e nas questões do governo. Nesse sentido, o calvinismo introduziu uma visão de responsabilidade social que influenciaria profundamente a ética do trabalho e a formação das sociedades modernas, especialmente nas áreas influenciadas pela Reforma.

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