Wendell Lessawendell_lessa@yahoo.com.br

A misericórdia de Deus nos misericordiosos

Publicado em 13/11/2024 às 19:00.

O Sermão do Monte, encontrado nos capítulos 5 a 7 do evangelho de Mateus, é um dos mais profundos e significativos ensinamentos de Jesus. Nele, o Mestre revela os princípios do Reino de Deus, desafiando a compreensão humana de justiça, poder e santidade. Em meio às bem-aventuranças, que iniciam esse discurso, encontramos uma expressão poderosa e radical de como a misericórdia divina se reflete na vida dos seus discípulos. A bem-aventurança registrada em Mateus 5:7, “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”, ressoa não apenas como um convite à imitação de Deus, mas também como um princípio fundamental da vida cristã, especialmente à luz da teologia reformada e calvinista.

A misericórdia de Deus é um tema recorrente na Escritura, especialmente no Novo Testamento, onde ela se revela como um dos maiores atributos de Deus para com os seres humanos. A Bíblia é clara ao afirmar que a misericórdia de Deus é a base de toda a nossa salvação. Quando refletimos sobre a misericórdia de Deus, não estamos falando de um simples sentimento de piedade ou compaixão, mas de uma ação divina, que se expressa em favor de seres humanos totalmente indignos. 

Em sua essência, a misericórdia de Deus é a disposição de Deus em aliviar o sofrimento do ser humano, levando-o ao perdão e à restauração. Em Efésios 2:4-5, o apóstolo Paulo escreve: “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, estando nós ainda mortos em nossas transgressões, nos deu vida juntamente com Cristo — pela graça sois salvos.” Aqui, Paulo destaca que a misericórdia de Deus é a causa primeira da nossa salvação, pois foi ela que nos alcançou quando ainda estávamos mortos em nossos pecados. A misericórdia de Deus, portanto, não é uma resposta a méritos humanos, mas uma graça imerecida que transforma vidas.

Na teologia reformada, a compreensão da misericórdia divina é central para a doutrina da justificação. Somos justificados diante de Deus não por nossas obras, mas unicamente pela graça de Deus, recebida pela fé. A misericórdia de Deus não apenas perdoa nossos pecados, mas também nos dá um novo coração, capacitando-nos a viver segundo a sua vontade. Em outras palavras, a misericórdia de Deus não é apenas uma resposta ao nosso pecado, mas também a fonte de nossa capacidade de viver de maneira piedosa. Essa é a base da vida cristã, algo que é frequentemente resumido pela famosa fórmula calvinista “sola gratia” – a salvação é pela graça e pela graça somente.

Em Mateus 5:7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.” Esta bem-aventurança nos ensina que a misericórdia de Deus não apenas nos alcança de maneira unidirecional, mas também deve ser refletida em nossa vida. A misericórdia, aqui, é descrita como um caráter que os discípulos de Cristo devem cultivar e manifestar uns para com os outros.

A palavra grega usada para misericórdia refere-se a uma ação compassiva e cuidadosa que busca aliviar a miséria ou o sofrimento do outro. Essa misericórdia não é uma misericórdia passiva ou puramente emocional, mas uma misericórdia que leva à ação. Na perspectiva calvinista, essa ação é sempre uma resposta ao amor e à graça de Deus em nossas vidas. Assim como Deus, em sua infinita misericórdia, nos perdoa e restaura, nós também devemos ser agentes de misericórdia para com os outros.

A promessa que acompanha a bem-aventurança — “porque alcançarão misericórdia” — revela que há uma ligação direta entre nossa prática de misericórdia e a misericórdia que Deus nos concede. Não se trata de uma troca mercantil, mas de uma manifestação de como o Reino de Deus funciona: aqueles que verdadeiramente experimentam a misericórdia de Deus, tornam-se misericordiosos, e isso é um reflexo genuíno de que a graça de Deus está operando em suas vidas.

Em um mundo marcado pela indiferença, pela competição e pelo egoísmo, a misericórdia de Deus se destaca como um sinal de contradição. A prática da misericórdia nos leva a viver de forma radicalmente diferente do padrão do mundo. Para os cristãos, isso não é apenas uma recomendação moral, mas uma exigência do próprio Senhor. A misericórdia se manifesta de diversas formas no cotidiano, desde gestos simples, como perdoar ofensas e ajudar os necessitados, até atitudes mais profundas, como buscar a reconciliação entre irmãos e lutar por justiça social.

Na vida diária, ser misericordioso implica estar atento às necessidades dos outros, especialmente aos mais vulneráveis. No Sermão do Monte, Jesus não faz distinção entre os merecedores e os não merecedores de misericórdia. A prática da misericórdia vai além daquilo que parece justo ou razoável aos olhos humanos. Em Mateus 18:21-35, na parábola do servo impiedoso, Jesus ensina sobre a necessidade de perdoar de maneira ilimitada, assim como Deus nos perdoou. A verdadeira misericórdia, portanto, não tem limites, nem exige que o outro “mereça” ser perdoado ou ajudado. Na prática reformada, isso é entendido como uma imitação de Cristo, que nos amou quando éramos ainda Seus inimigos (Romanos 5:8).

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