Vanessa AraújoJornalista, especialista em cinema e linguagem audiovisual

Talvez

Publicado em 22/05/2025 às 19:00.Atualizado em 22/05/2025 às 20:54.
 (Edvard Munch)
(Edvard Munch)

— Me dá uma cachaça, então.

Eram ainda 10 horas da manhã. Os pés sujos, acinzentados, pareciam não ser lavados há alguns dias. A blusa branca, daquelas de propaganda, também já mostrava as marcas de um uso rotineiro. Assim como a bermuda jeans, surrada; e o boné, desbotado.

Talvez fosse para o trabalho, mas não deu certo. Pelas marcas nas roupas, servente de pedreiro? Ajudante de pintor? Deve fazer algum bico. O “então” também deve significar algo. A cerveja estava quente, porque ainda era muito cedo. Ou estava mais cara que o esperado. Então, uma cachaça.

A dose é barata. Quando criança, houve uma época em que era moda uma tal de “cachaça sem bafo”, me lembro. Provavelmente, era só uma brincadeira. Acho que não tem como beber e despistar o cheiro do álcool.

Talvez estivesse triste. Brigou com a mulher. Saiu de casa cedo, pra procurar algo pra fazer, e não encontrou. Uma cachaça, então. Só uma dose não ajuda muito, mas com umas três, a gente já começa a esquecer que tem problemas.

Pelo menos não era mulher. Mulher cachaceira é muito feio, dizem. Uma parenta distante costumava beber e ficar caída pelas ruas da comunidade rural em que morava, me contaram. As mais novas da família costumavam xingar umas às outras pelo nome dela, como se fosse insulto.

Talvez tenha perdido o emprego. Chegou atrasado, mandaram-no embora. Voltar pra casa às 10 horas não pega bem. A mulher vai brigar. Não vai ter como comprar mistura pro jantar. Final de mês já é difícil. Pode ser que não tenha nem almoço.

Pode ser que um copo resolva. Dê coragem. Pode ser que não precise de coragem, só de acalanto. E tá frio. O inverno chegou cedo este ano. O asfalto nem está quente ainda. E já são 10 horas da manhã.

Talvez as coisas estejam ficando difíceis. Esse bar nem abria pela manhã, e agora já vende cachaça no turno matutino. Muita notícia de crise. Guerra. Golpe. Brasileiros que não conseguem comprar a cesta básica. Melhor beber pra esquecer. E, se beber mais cedo, esquece mais rápido. Melhor pra quem vende.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por