Mara Narciso

Um livro bom!

Publicado em 08/04/2024 às 21:20.

Vou me deter ao estilo suave de Karla Celene Campos narrar tragédia com palavras de confiança, sem me atrever a replicar os fatos. É impressionante a capacidade que tem a autora de poetizar, sem romantizar a dor da “Síndrome do Encarceramento”, situação limite em que uma pessoa consciente está dentro de um corpo inerte, sem mover uma pálpebra. O evoluir do envenenamento vem em apertos e angústias, mas, caprichosa, a autora usa de cuidados afáveis para envolver a desgraça em brumas poéticas. É surpreendente a maneira como consegue fazer isso, utilizando-se de um projeto gráfico, com espaços e respiros, para não asfixiar o leitor.

Ao fim da leitura, pessoas não se contêm e comentam nas redes sociais os choros que as acometeram, mesmo com a maneira carinhosa de ela falar de intermináveis pesadelos, circunstâncias que, ao invés de afugentar, atraem curiosidade ao seu relato. Karla Celene é aconchego e afago, e sua escrita, mesmo realista, também é assim.

“Antônio - Olhos da Vida” é um soberbo registro de como o dietilenoglicol na cerveja Belorizontina da Backer envenenou e por pouco não matou o cunhado da escritora. Atordoada, discorre sobre a desdita, acalmando a todos, em especial a sua irmã Vanessa, esposa da vítima. Em certo momento, cansada de se conter, indigna-se e rasga o verbo contra o irreversível.

É hábil em contar essa longa dor familiar, com cinco meses de tratamento intensivo num corpo imóvel, no respirador, em cujos olhos não entravam a luz e os rins não funcionavam. Dez vítimas morreram. A autora diz: “e o dia amanhece assim: medo de ter esperança, medo de não ter esperança”.

Imagina sobre o coma, a situação daquele momento: “em que mundo está”? Questionando-se sobre onde estaria o pensamento de quem está fora de si, supõe que haja “aparições, sonhos, esperança, energia”.

Além da escrita limpa, clara, atraente, o talento de Karla Celene vai para além da luz e da poesia, dá uma aragem em si e ao leitor com citações, poemas e letras de música dentro do contexto. Mas a verdade é cruel e arrastada, então compara: “escalar montanhas, a difícil escalada que separa a vida da morte”.

Karla Celene espalha luminosidade, uma pessoa que é, pensa, fala e escreve de forma cintilante e rara sensibilidade. “O que seriam das nossas feridas sem a música, sem a poesia?” E depois: “o que seriam das minhas feridas se eu não as escrevesse”?

E faz perguntas diante do drama instalado em 27 de dezembro de 2019, quando também a Covid-19 põe sua cara feia de fora. Logo a pandemia estaria presente para infernizar o que por si só já é insuportável.

Sobre os dias que correm, faz uma metáfora: “o tempo, êta passarinho que não sossega as asas que Deus lhe deu”. E sobre a morte: “nada escapa ao inexorável deixar de existir”.

Descreve sofrimento, infortúnio, valoriza a vida e uma existência de outro jeito. Conta sobre os passos, avanços e recuos na recuperação. Exercita-se na capacidade de aceitar e resignar-se com as sequelas, trazendo leveza aos viajantes que embarcaram em sua literatura.

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