Mara Narciso

“Gataborralherei-me”

Publicado em 21/11/2022 às 21:47.

A crônica é um gênero literário, em geral, considerado menor e descartável, no qual pode ser usado um fato pequeno do quintal do cronista e tentar coletivá-lo, levá-lo para o interesse geral.

Lavava minhas roupas manualmente e pensava em como a aposentadoria súbita, devido à pandemia, me fez sofrer uma metamorfose às avessas. Não que eu fosse uma borboleta e virasse lagarta, nem tanto, mas quase uma Cinderela transformada em Gata Borralheira.

Costumava me sentir bem com o que faço e com o que sou. Conquistei quase tudo que almejei. Cuidei-me da cabeça aos pés por toda uma vida, inclusive a mente, através da psicanálise. Não me abandonei, e continuo nesse intuito da maneira que hoje me é possível. Não serei desleixada e nem entregarei os pontos, mas alguns cuidados não são exequíveis na qualidade de antes, por uma questão de custo.

Mantenho a minha casa habitável, dividindo as tarefas com meu filho Fernando, e nos damos muito bem. Continuo, desde 27 de fevereiro de 2002, com o intervalo de pouco mais de um ano devido à pandemia, minhas sessões quinzenais de psicanálise.  

Não rezo há mais de 50 anos, e não sinto falta alguma dessa prática. Faço o bem, em especial dando atenção e apoio a toda pessoa que eu saiba estar em dificuldade. Não pratico nenhum tipo de preconceito. Tenho plano de saúde, faço consultas regulares e exames, porque tenho saúde frágil; informo-me na mídia corporativa e nos canais alternativos de esquerda. Meu filho sabe tudo e conversamos sobre política.

Leio e escrevo todos os dias. Desde março de 2020 faço um diário que tem mais de 1300 páginas A4. Trato da minha medíocre vida e fatos relevantes relativos às notícias nacionais e estrangeiras.

Ocupo-me todo o tempo: cuido das plantas, das cachorras Frida e Pagu, nome de feministas que respeito, faço contatos frequentes com parentes, amigos e conhecidos. Tenho uma relação harmônica com os três irmãos, coisa que nem sempre foi assim.

Gostaria de ter recursos financeiros para voltar a cuidar de mim como antes, quando fazia pilates duas vezes por semana e dança flamenca uma vez por semana, derivativos dos quais me utilizei com êxito por quatro anos.  

Tomava uma bebidinha com meu filho aos sábados. Frequentava o salão de beleza toda semana, como também lavava o carro com a mesma frequência. Uma vez ao ano, em janeiro, passava pelo menos dez dias numa praia da Bahia.

A aposentadoria súbita e o baixo benefício impedem-me de fazer o que eu fazia, mas não reclamo, aqui constato um fato. Trago comigo o olho clínico de 40 anos de medicina e o feeling de jornalista praticado há 12 anos.  

Essas características que desenvolvi com muito estudo e prática ajudam-me a viver melhor essa fase da vida, amando-me e cuidando-me da melhor maneira. E dos outros também. Ocupada, mas não tanto quanto antes, encontro-me, portanto, disponível para dar melhor atenção a outras pessoas.

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