É madrugada. Lá fora, o mundo vive devagar, adormecido. Aqui dentro, há barulho. Metaforicamente, claro, caso contrário, eu seria o próximo tema da reunião do condomínio. Há tanto barulho aqui dentro que estou pensando seriamente em convocar uma assembleia solitária para resolver os tumultos do pensamento:
Fica decretado que, a partir de hoje, os pensamentos barulhentos só poderão circular, restritamente, em horário comercial. O mesmo se aplica aos sábados, pois nos feriados e nos domingos o barulho será estritamente proibido. Atenciosamente, o síndico.
Queria muito que fosse fácil assim: organizar e resolver. Ordenar para o meu cérebro não pensar na fatura do cartão ou nos boletos atrasados. A vida é assim, parece. Equilibramos um erro atrás do outro até que um acerto surge: e nos apegamos a ele como se fosse nossa tábua de salvação, a porta do Titanic que caberia uma galera facilmente.
Mas sobre o que estou escrevendo? Barulho? Salvação? Ou sobre o egoísmo da Rose? Não me lembro quem me disse, mas ouvi dizer que toda a literatura mundial resvala em apenas duas coisas: amor e ódio. O resto é repeteco.
Nesta madrugada, sinto ódio. Mas o ódio é um sentimento inerte, não provoca nada. Ódio de quê? De mim, claro. De não ter sido bom o suficiente para mim mesmo durante os anos. Hoje, percebo que tinha a faca e o queijo na mão, mas preferi jogar o queijo fora e espetar meu traseiro com a faca.
Antes que alguém fale com minha mãe, devo dizer que sou feliz, porque sei que sou o resultado de tudo que passei. Estou vivo. Respiro. Posso acordar amanhã e fingir ser uma nova pessoa. Fingir até acreditar. Não é esse o segredo das pessoas felizes? Veremos.