QUE VENHA À LUZ STEVIE WONDER
Stevie Wonder nasceu cego. Houve complicações no parto e o socorro produziu um choque cerebral, por excesso de oxigênio. Desde aquele instante o menino Stevie perdeu a visão. Não conhece o mundo senão por sensações outras, emanações, cheiros, contornos. Jamais viu uma capa de seus discos. Nem lua cheia. O talento de Wonder é inato, não requer a luz dos olhos, passa pela emoção e pelo coração – onde olhos, decerto, brilham mais.
Stevie tateia a vida e a faz arrepiar-se ao seu toque. Por isso fez tantas canções imensas, carregadas de lirismo e força, canções inesquecíveis de amor. Agora o musico se prepara para uma cirurgia, novíssima e cara para obter a visão, uma vez que com minutos de nascido, decerto nada registrou nos olhos. Tal cirurgia, esperança para muitos, desde que se submetam a uma seleção prévia, resulta na instalação de um chip no cérebro do paciente para fazer a vez dos olhos.
Os cientistas asseguram que com esta técnica é possível, em alguns casos, recuperar integralmente a visão. Que seja assim com Wonder, ele que já é imenso no escuro. Que possa o iluminado músico ver as marés. Sugiro, entretanto, que sejam tomados alguns cuidados, pois Stevie jamais tendo visto coisa alguma pode se assustar com o mundo, o mundo que se compôs a seu modo imaginário e para que, decepcionado, não se perca de sua essência lírica - é possível poupar o paciente da imagem das guerras, dos furacões assassinos e de meninos de Ruanda, aqueles meninos esqueléticos, meninos de sua raça deixados no mundo.
Deve-se poupar o paciente de imagens de crime de morte e das expressões de cinismo. Poupado deve ser Stevie de avistar-se com a secura do mato, dos incêndios e das árvores mortas. Livrá-lo das cenas de pavor dos rios secos e das mãos crispadas dos jovens traficantes sobre as armas grossas. Deve-se poupar o ídolo das agruras dos braços pensos, os braços entregues às seringas e à gula do vício. Das cenas de barbárie nas prisões e nas celas imundas, cobertas de horror e sombra.
Livre deve estar o coração – e olhos - do músico das visões amargas do planeta, as visões que não acrescentam e mais nos bebem, tais como as geleiras derretidas nos pólos, inundando os oceanos. É improvável produzir horrores de visão num coração forjado a cinza, um coração sem cor, coração de poeta. É desnecessário, e eu diria proibido, ferir a imaginação de um homem bom, dando-lhe imagens desta vida feia.
É preciso organizar um cenário formidável para entregar a Stevie Wonder, quando lhe voltarem os olhos. Algo lindo e limpo, capaz de não decepcioná-lo. E desnecessário e imodesto sugiro que sejam então suas primeiras luzes uma borboleta tropical, a mulher amada, uma criança e um mar à tarde. Podem se avistar ainda as cordilheiras dos Andes, ou os Alpes, Kilimandjaro, antes que se desnude do gelo, um pequizeiro na florada ou o sorriso inebriante e provocador de Angelina Jolie. Mas que seja coisa boa. Tal qual são bons, particularíssimanente, os nossos sonhos bons. Que Stevie Wonder possa vir à luz sem traumas.