Coisas da vida

Jornal O Norte
22/08/2005 às 16:02.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:50

Aprígio Veloso Prates

Dia desses eu ia para o Centro da cidade e encontrei o Zeca, um conhecido que há alguns meses eu não o via. Cumprimentei-o.

- Olá, Zeca, como vai você? Como estão as coisas? E a família?

- Olá, tudo bem, com exceção daquele probleminha de dores nos rins, na coluna e nas pernas; o problema de pressão alta está controlado.

- Mas, você vai indo a pé para o Centro, o que houve com o seu carro?

- Uai, você não ficou sabendo? Tive que vender meu carro, para pagar os estragos que fiz no carrão de uma madame.

- Mas, o que aconteceu?

- Problemas com buracos. Eu ia seguindo direitinho na minha mão de direção e, ao tentar desviar de um buraco, caí num outro maior, o carro perdeu o controle e foi colidir com o carro daquela senhora. Você sabe como é, não é? A prefeitura cobra os impostos do povo e, depois, não conserta a buraqueira das ruas. E o pior é que põe a culpa no coitado de São Pedro. Diz que é por causa das chuvas. Têm ruas por aí, como você mesmo já deve ter visto, que não dá nem pra gente trafegar nelas. O pior é que nem aquela senhora e nem eu temos culpa do que aconteceu, mas eu tive que pagar.

- Puxa, Zeca, é muito azar!

- Azar nada, são coisas da vida.

- E sua esposa, como vai?

- A Terezinha? Tudo bem com ela. Desde que saiu do hospital, está indo bem, mas ela também tem uns problemas de bronquite e asma, pressão e labirintite. Só que a pressão dela é pressão baixa. A mulher vive tonta, coitada, e dorme que é uma coisa. É boa de cama, mesmo.

- Mas, Zeca, a Terezinha chegou a ficar no hospital?

- Sim, ela pegou a tal de dengue. Ficou lá uns oito dias, e me deu um trabalho danado. Chegou a ficar na UTI. Mas não foi só pra mim que ela deu trabalho não, pros médicos e enfermeiros também.

- Zeca, como é que ela pegou a dengue?

- Ah, moço! Você sabe, com esse matagal que tem nesses terrenos baldios espalhados pela cidade, o danado do mosquito se reproduz mesmo e muito depressa. A cidade está cheia de mato e têm essas grandes áreas urbanas que ficam abandonadas esperando valorização e, como são de propriedade dos ricos, ninguém fala nada e não toma nenhuma providência.

- Mas, depois disso ela melhorou, não é?

- Ah, sim! Ela até tinha melhorado um pouco, mas teve uma recaída.

- Ah, já sei, por causa da labirintite, né?

- Não, foi por causa da Elisângela.

- Mas, como?  O que tem a Elisângela com isso de dengue, labirintite, pressão baixa...?

- Ora, você sabe. Essas moças de hoje em dia só dão dor de cabeça aos pais. Elas só aprontam. Imagine você que a minha filha Elisângela chegou lá em casa esses dias e, com a maior cara de pau, falou pra mãe que está grávida.

- O que, Zeca? Elisângela grávida?

- Pois é, isso aconteceu com ela, e tem acontecido também com muitas meninas por aí, que vivem grudadas na televisão, assistindo essas novelas indecentes que a rede Globo põe no ar. Você sabe mais do que eu que a televisão, por um lado, educa, mas por outro ela degenera a sociedade, e os jovens que ainda não têm uma formação completa de maturidade, acabam se espelhando nos programas de televisão, e nessas novelas indecentes e absurdas. Você viu?  Em quase todas elas, os autores fazem questão de colocar viados e prostitutas, lésbicas e outros bichos.  Eu disse viado porque são esses da cidade, os quais são diferentes até no nome, dos veados, aqueles animaizinhos que habitam o campo, e que são tão perseguidos por caçadores inescrupulosos. E a Elisângela foi também vítima dessas novelas imorais que só ensinam o que não presta.

- Mas, ela está passando bem?

- Sim, e já está de quatro meses, e também já sabe que é um casal de gêmeos.

- Ah, meu amigo Zeca, você não deve deixar isso barato, não. Procure o rapaz e dê-lhe uma prensa, e faça ele assumir toda a sua responsabilidade.

- De jeito nenhum! Eu, agora, já sei que tenho mais um encargo, ou melhor, mais uma carga, para carregar. Vou criar meus netos, e pronto.

- Mas, Zeca, ele é o pai, tem de assumir! Procure ele.

- De jeito maneira. É um crápula que não vale nada. É condenado pela justiça por furto, roubo, estelionato, assalto e outras coisas que aprendeu na televisão, e está cumprindo pena em liberdade. Dizem que é a tal de condicional, mas você sabe, a lei é muito condescendente com essa gente, ou melhor, com alguns, porque têm outros que estão presos por delitos menores, e não conseguem a liberdade. E tudo isso por causa das arestas que tem no Código de processo penal e no Código civil também. 

- Puxa vida, Zeca, talvez se esse rapaz estivesse preso, sua filha não teria se envolvido com ele.

- Que nada, moço, pois foi lá que ela conheceu ele. Ela foi com uma amiga lá na cadeia, e lá conheceu esse cara, e depois que ele saiu, ele aprontou essa que sobrou para mim. Hoje mesmo vou acompanhá-la ao médico, e só depois é que vou levar minha sogra para tirar o gesso.

- Gesso? Por quê?

- Por causa da queda que ela tomou ao andar numa calçada da cidade. Tinha um degrau tão grande e ela estava andando distraída, não percebeu, caiu e quebrou a bacia. Você sabe que a cidade está em pandarecos. Não há sequer uma calçada que não tenha degraus. E o pior é que não há necessidade de tantos degraus nessas calçadas. Têm degraus de até um metro de altura, mas os vereadores nada fazem a esse respeito, porque um projeto visando nivelar as calçadas é um pouco antipático, e eles têm medo de perder a boquinha lá  na câmara. Mas, se Deus quiser, ainda há de chegar um vereador lá que tenha coragem de apresentar um projeto nesse sentido.

- Sinto muito pela sua sogra, Zeca.

- Muito obrigado, mas eu vou dar a volta por cima. Hoje mesmo, ao voltar com a minha sogra, eu irei lá no banco para resolver o problema do Carlinhos, meu filho.

- Uai, Zeca, o que houve com o Carlinhos lá no banco?

- Uai! É pra você ver como são as coisas. O tal de cheque especial. O banco  liberou um cheque especial de três mil reais para o Carlinhos, e ele, como estava desempregado, assim como uma grande parte dos brasileiros, resolveu comprar a prestação. A dívida cresceu muito, porque, como você sabe, os juros são altíssimos e a financeira do banco está cobrando, e ameaçando até de penhorar  nossa casa. E como você já está sabendo, os bancos fazem uma propaganda danada de dinheiro fácil, e o povo acaba entrando de gaiato. E o pior é que, com o problema da gravidez de Elisângela, eu não tenho nem tempo de procurar emprego.

- Mas, Zeca, você está desempregado outra vez?

- Sim, outra vez.

- E aquela empresa não era sólida?

- Sim, mas a ganância falou mais alto que a honestidade, e um dos sócios começou a desviar dinheiro. E, além disso, meu patrão não conseguiu pagar os altos impostos que o governo cobra, e a firma faliu. Nem meu fundo de garantia foi depositado. Eu ainda estava contando com a ajuda de meu irmão, mas, desde a morte dele que as coisas se complicaram e minha cunhada, coitada...

- Zeca, me desculpe, uma outra hora a gente conversa mais, pois tenho que ir a um compromisso. Até mais.

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