Catástrofe

Jornal O Norte
17/10/2005 às 12:04.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:53

Luiz Vilela

- Vai ser uma catástrofe!

- O que eu podia fazer?

- Você podia ter falado pra ela não vir.

- Eu ia falar uma coisa dessas?

- Por que não?

- Uma pessoa me telefona falando que quer vir passar uns dias na minha casa: aí eu falo pra ela não vir?

- Por que não?

- Você falaria?

- Claro que eu falaria.

- Pois eu não.

- Eu falaria: "Escuta, fulana, eu fico muito feliz de você ter se lembrado de mim e da minha casa, mas seria melhor você não vir, porque meu marido não só não aprecia visitas, como também, e principalmente, não aprecia crianças, tanto é que nós não as temos.”

- Muito engraçado... Já imaginou eu dizendo isso pra ela ou pra quem quer que seja?

- Você não disse; o resultado aí está: eles vêm.

- São só seis dias, Artur.

- Só seis dias...

- Ela quer aproveitar a Semana da Criança.

- E nós com isso?

- Ela queria dar um presente para os meninos, e aí ela escolheu esse passeio.

- Muito bonito: ela dá o presente, e nós pagamos a conta...

- Ela me disse: "Mimi, sabe de que os meus filhos estão precisando? Sabe de quê? Eles estão precisando de um banho de interior."

- Se depender de mim, eles vão ter é um banho de sangue.

- "Você acredita, Mimi, você acredita que até hoje alguns dos meus meninos nunca viram uma galinha de verdade?”

- Por que eles não vão numa granja? Perto de São Paulo existem dezenas.

- Ah, Artur; você sabe que não é isso.

- Então é o quê?

- Você sabe que... É como a Dininha disse: "Uma galinha passando na rua, os pintinhos atrás...”.

- Galinha passando na rua...

- "A galinha ciscando..."

- Essa sua amiga é maluca...

- São essas coisas, entende? São essas coisas que ela quer...

- É maluca sua amiga.

- Não, maluca ela não é não.

- Começa pelos filhos. Ou melhor: por ter filhos, já que ter filhos é um ato de insanidade mental.

- Ter filhos é um ato de amor, Artur.

- Os ratos que o digam.

- Ter filhos...

- Já começa por aí, por ter filhos; agora, ter sete, sete filhos: isso é a própria loucura.

- Por quê?

- Porque é.

- Eu não acho.

- E os nomes? Os nomes dos moleques...

- Quê que tem os nomes?

- Repete aí pra mim...

- Pra quê?

- Repete...

- Dagoberto, Delmiro, Dilermando, Donato, Durango, Dorval e Durval.

- Santa Maria...

- Os dois últimos são gêmeos.

- Bem feito. Deus castiga.

- Eu tenho muita dó da Dininha; muita. Já pensou, ser abandonada nova ainda, com sete filhos pequenos?...

- Eu imagino o cara: um dia ele olhou ao redor, viu aquele bando de meninos e aí pensou: "Meu Deus, quê que eu fiz?..." Pegou então a maleta, saiu de fininho e caiu no mato.



- Além do mais, a Dininha foi minha amiga de infância, minha melhor amiga. Hospedá-los é um jeito de eu agora ajudá-la; de nós dois a ajudarmos.

- Ajudar...

- O que é hospedar por alguns dias uma família?

- Isso não é uma família: é uma horda.

- Nossa casa é grande; nós temos recursos, felizmente...

- O problema não é esse, Mimi; o problema nem é a nossa paz, que eles vão perturbar.

- Então qual é o problema?

- O problema é que eles vão acabar com tudo!

- Acabar com tudo como?

- Acabar com tudo, tudo o que tem aqui: acabar com os quadros, com as esculturas, os tapetes, as orquídeas, os bichos; eles vão acabar com tudo!

- Como você pode falar isso, se você nem conhece os meninos, Artur?

- É preciso?

- Você nem sabe como eles são.

- É uma equação, Mimi; uma equação matemática.

- Equação...

- Pensa bem: sete meninos, sete meninos de três a onze anos, sete meninos engaiolados num apartamento no centro de São Paulo: de repente esses meninos são soltos, levados para o interior e despejados numa casa ampla, com jardins, quintal, bichos... 0 que vai acontecer?

- Não vai acontecer nada.

- Não, não vai não...

- Não vai acontecer nada.

- Eles só vão acabar com tudo.

- Imaginação sua, Artur.

- Imaginação...

- Você que está imaginando isso.

- Os quadros e as esculturas, eu ainda podia levar para um banco, podia fazer isso. Mas e as orquídeas? E os bichos? Como que a gente vai tirá-los daqui? Onde que a gente vai pôr? E quem iria cuidar deles?

- Pense um pouco, Artur...

- Pensar o quê?

- Pense no que seria essa viagem para os meninos...

- Por que eu vou pensar nisso?

- Você também já foi menino...

- Já, já fui, e dou graças por não ter sido menino de capital e por nunca ter morado em apartamento; e, se mais alguma coisa preciso acrescentar por ter visto galinhas desde pequeno.

- Você também já foi filho...

- Fui, embora não exatamente por minha vontade. Mas, de qualquer forma, posso dizer que ter sido filho foi, pela mãe que eu tive, a melhor coisa de minha vida.

- Então? A Dininha também está querendo ser uma boa mãe para os filhos dela.

- Filhos...

- O quê?

- Para que filhos?...

- Para quê?...

- Será que não vão um dia parar com essa bobagem?

- Se parar, a humanidade acaba.

- Alguma objeção?

- Se não fossem os filhos, uma hora dessas nós dois não estaríamos aqui.

- Nem estaria essa debilóide nos ameaçando com essas sete pragas, com essa catástrofe.

- Bom: nós já falamos muito.

- Já.

- Vamos encerrar?

- Vamos.

- Eu não vou fazer nada.

- Não.

- Eles vêm.

- É.

- Eu até já vou comprar uma lata de biscoitos.

- E eu uma caixa de balas.

- Balas? Você?...

- Balas de revólver, my dear.

Compartilhar
Logotipo O NorteLogotipo O Norte
E-MAIL:jornalismo@onorte.net
ENDEREÇO:Rua Justino CâmaraCentro - Montes Claros - MGCEP: 39400-010
O Norte© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por