Caim: uma trombada com Deus!

Jornal O Norte
03/11/2009 às 12:30.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:15

Felippe Prates

Em seu novo romance, Caim, José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, enfatiza seu desgosto com todas as religiões.  Não é tarefa fácil permitir-se ironizar, de forma irreverente e até mordaz, o único livro considerado Patrimônio da Humanidade, como é a Bíblia, cuja etimologia significa "O livro", por antonomásia a grande novela do mundo, a mais traduzida de todas as publicações da História.  José Saramago se atreveu a fazê-lo em seu novo romance Caim, livro que recebemos numa cortesia da editora Companhia da Letras, para crítica. "Não deixará indiferente os leitores",  afirmou sua mulher, Pilar del Rio, louvando o trabalho de Saramago que neste romance tromba de frente com deus (grafado em minúscula, como acontece em todo o livro), com a força literária que caracteriza suas obras.

Se tudo se permite à ficção, mais ainda ao Nobel português, que nos tem presenteado sempre com uma literatura enraizada na vida, comprometida com os ataques à injustiça, capaz de fazer sangrar as palavras como em "Ensaio sobre a cegueira" ou neste surpreendente Caim, em que o escritor pretende acertar contas com deus.  Curiosamente, o faz com um deus que ele mesmo afirma existir tão somente na fantasia dos homens, uma invenção literária de todos os tempos.  Poderiamos perguntar-lhe, então, porque voltou depois de 20 anos, desde o seu polêmico "O Evangelho segundo Jesus Cristo", a confrontar-nos com a existência de deus a quem ele mesmo disse que não invocaria nem no momento da própria morte, pois nada teria para lhe pedir. Mas, Saramago é assim, o rei da polêmica e da ironia. Ele gosta de provocar.  Existe e quer que o notem. Escreve em relevo, sobre pedra dura.  Como nesta novela em que acusa deus de ter desprezado os sacrifícios que Caim lhe oferecia para preferir os de seu irmão Abel. Seria o deus caprichoso e injusto da Bíblia, aquele que se diverte expulsando Adão e Eva do Paraíso por terem querido conhecer o bem e o mal.  Chamam a nova obra de Saramago de uma "reivindicação de Caim.  É, e não é.  Em todo o texto em que Caim é narrador e protagonista das atrocidades do deus bíblico, o irmão de Abel não nega o seu crime e aceita a sua vida errante como uma espécie de castigo. Se ele matou seu irmão, segundo Saramago, na realidade ele queria matar deus, que cometeu muito mais crimes do que ele:  assassinou milhares de inocentes ao despejar fogo sobre Sodoma e Gomorra e chega à crueldade máxima de pedir a Abraão que mate seu próprio filho.  Portanto, a dialética de Caim com deus é impecável.  Se eu pequei, tu pecaste muito mais.  Se eu matei meu irmão, tu, ó deus, mataste ou mandaste matar a muitos mais!  O escritor aborda em seu livro o absurdo de um deus que na Bíblia aparece mais cruel e caprichoso que o pior dos homens, o deus terrível do Sinai, o deus que pede sangue para ser vingado e que é obedecido cegamente. A Bíblia é a história de um povo em busca do seu destino, no qual se misturam mitos, metáforas e fatos históricos.  É o espelho da humanidade, com suas baixezas e esplendores. O melhor e o pior de deus e da história estão concentrados nesse livro, que poderia representar a imagem plástica da complexidade do ser humano.  Saramago tem razão, ao mostrar que na Bíblia existe, também, o ser cruel e exterminador que tão bem descreve Caim.  Este foi o deus escolhido por ele para ser desmascarado em seu novo livro.  E tem todo direito, pois a literatura não admite censuras.  Os cristãos poderão dizer que na Bíblia, escrita há mil anos, existe, também, o deus do profeta Isaias, mais preocupado com o homem do que uma mãe.  Porém, é ao deus cruel que Saramago pede explicações, um deus que, segundo ele, não poderia existir porque não seria Deus. Em Caim, na página 87, o escritor resume muito bem o que para ele é esse conflito entre Deus e o homem: "A história do homem é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele". Para Saramago, Deus não é mais do que um pretexto para que as religiões possam melhor escravizar a consciência humana e neste momento muito se aproxima da definição freudiana.  Ao mesmo tempo, apesar de seu ateísmo, devemos ao seu gênio uma das definições mais poéticas da divindade: "Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio". 

Na nossa opinião, na verdade, Caim é definitivamente um grito contra todos os deuses falsos e ditadores criados para amordaçar o homem, impedindo-o de viver em total liberdade sua vida e seu destino.

No novo romance de Saramago, um ateu convicto, Deus e qualquer crença sucumbem sob uma narrativa em que se equilibram humor, ironia e palavras duras.  Sobra para cristãos e judeus.  Diz ele que se limita a escrever o que pensa, deixando cada leitor fazer sua interpretação. E afirma que Caim tem papel fundamental em sua bibliografia e em sua vida. Em entrevista, segundo o Nobel português, "o regresso ao tema religioso deu-se de maneira natural, quase como uma continuidade do trabalho contido no "Evangelho segundo Jesus Cristo". No fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio todas as religiões por serem nocivas à Humanidade. São palavras duras , mas há que dizê-las.  A história de Caim, como muitas outras histórias bíblicas é mal contada.  Não absolvo Caim, mas acuso Deus de ser o responsável pelo assassinato de seu irmão ao recusar a oferenda dele.  Que diabo de Deus e esse que para enaltecer um irmão despreza o outro?  Penso que não merecemos a vida, penso que as religiões foram e continuam a ser instrumentos de domínio e morte."

Este livro, tão chocante quanto um soco na cara, que a crítica internacional considera um dos melhores já produzidos pelo intelecto humano, uma autêntica obra prima, deve ser obrigatoriamente lido por todas as pessoas que apreciam a literatura de alto nível. Com176 páginas, editado pela Companhia das Letras, primorosamente bem impresso, custa 36 reais. Um excelente presente para ser dado por ocasião do Natal, que além de encantar ao presenteado de refinado gosto literário, consagrará seu inspirado presenteador.

Às nossas leitoras, por instigante e mais difícil que seja, aconselhamos ler Caim aos poucos, sorvendo-o lentamente, em vários dias, meditando em tudo que seu maravilhoso mas chocante texto nos oferece, consultando a Bíblia (Gênesis), para melhor entendê-lo. 

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Falem-nos: felippeprates@ig.com.br

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