Bichinho - por Eduardo Lima

Jornal O Norte
30/01/2007 às 09:57.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:56

Eduardo Lima *

Vitoriano Veloso fica encravado num canto sem rio, embora suas árvores sejam verdes como a plumagem das maritacas. De Tiradentes fica a seis quilômetros por estrada de terra e de Prados, a cujo município pertence, fica a outros onze, também no chão. Com carinho o distrito é chamado Bichinho. Já por maio é fria a região, mas come-se bem em qualquer estação, desde que se aporte na Joana ou na Ângela, cozinheiras de mão cheia que não usam nada demais, nem tempero, produzindo pratos com paladar medidinho, comidas benditas, destas que nos matam de sono depois do almoço. Há tempos eu não andava por ali.

Pois foi assim, inventor de horas, que fui buscar saudade, rever amigos e encantar-me com o gênio de Tote, da Oficina de Agosto e com o talento do irrequieto Celso, da Casa da Lata, gente que consegue ouvir a voz das folhas e da cor das folhas. Não há no Bichinho espaço para síndromes, senão talvez uma de ficar deitado em rede, esperando o céu clarear, de sol ou lua, na regular iluminação do céu.

Pode-se reservar ainda espaço para ter a alma limpa, livre de fantasmas alucinados, tais como medo, a ganância ou o desejo fedorento de possuir. No Bichinho se pode escancarar a boca, o ouvido, o coração e fechar os olhos para viajar no silêncio da paisagem. Eu mesmo avistei um gambá imenso, na casa da Ivete e contou-me Cleide que o bicho é criado sem cismas. Contam inclusive que alguém teria dito a Ivete que o tal comia ovos das galinhas do quintal, propondo elimina-lo, ao que ela respondeu docinha: “você também não come estes ovos? Que mal faz então que os comam o gambá que mora no meu quintal?”. E graças a esta adoção o gambá habita por ali, sem nome, inofensivo.

Já Celso, o da Casa da Lata, conta casos, dentre tantos um que dá conta de que tenha começado a trabalhar aos quarenta e cinco anos. Até então vivera de brisa, à beira do mar, esperando que chegasse o dia de criar seus móveis lindos, cheios de talento e presteza, todos em madeira, ferro e lata. E a ele outros personagens se somam fazendo a sinfonia de Vitoriano Veloso, o Bichinho, um lugar que é céu no chão que cerca a Serra de São José.

E assim, nesta pasmaceira, cuidando de entender como pode haver alguém tão talentoso, tão criativo, tão genial como Tote, da Oficina de Agosto, que chegou no lugarejo e fez de todos os seus habitantes artesãos, tentando entender como pode haver pessoas que conseguem viver sem gás carbônico, stress e medo, neste pensar preguiçoso é que fui a Prados tentar rever Eduardo, um fazedor de sapatos que conheci há alguns anos e com quem tomei uma pinga carinhosa. Fui à casa dele, fechada, embora lhe encimasse a placa “Eduardo – calçados artesanais”. Veio então um menino e perguntou se podia ajudar. Cadê Eduardo? E ele me disse, sem cismas; “Eduardo morreu”.

Fiquei triste. Voltei pela estrada de poeira e terra, assobiando o Trenzinho Caipira, de Vila Lobos. Olhei a Serra de São José e era a mesma. Olhei um córrego e uma vaca. Olhei um velho carro atirado numa vala. Olhei ao meu redor com saudade de um amigo curto, que vira uma única vez e que era meu ouvinte e leitor e pensei sobre o quanto a gente é frágil, pequena e rápida nesta vida. Apertei a mão de minha mulher, puxei fundo o ar, desejei que Eduardo, o artesão de sapatos, estivesse no céu e mudei o assobio; puxei uma canção feliz. Voltei ao Bichinho e fui ver borboletas, beija flores e outras coisas, enquanto ouviam-se os ruídos dos artífices pela rua e no ar vinha, longe, um cheiro de frango com ora pro nobis. Bom mesmo pra viver é a vida, simplesmente, pensei já rindo.

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