As vozes do Velho Chico

Jornal O Norte
Publicado em 10/04/2008 às 17:23.Atualizado em 15/11/2021 às 07:30.

José Antônio de Souza


Barranqueiro de Januária, autor do romance Paixões alegres, teatrólogo e produtor de teatro. Reside em São Paulo



Uma voz ergueu-se nas montanhas de Minas para salvar as vozes em extinção do São Francisco: Domingos Diniz, folclorista e poeta, fez um trabalho primoroso e precioso em torno de depoimentos dos velhos navegantes do grande rio – vapozeiros, remeiros, barqueiros -, remanescentes do longo ciclo de comércio e circulação fluvial entre os portos de Pirapora e Juazeiro.



Agora que tanto se fala e já se comete o desvio das águas do Velho Chico, sob a alegação de regar uma região seca do Nordeste, e que, como tudo o que se faz em grande escala no Brasil, visa de fato regar o interesse dos poderosos, dos seculares exploradores do povo, daqueles que vão usar e abusar da água para a multiplicação de seus lucros, deixando a migalha de algumas gotas para a garganta e a roça dos necessitados, no velho exercício de tapeação e embuste em que se faz da sede, da fome, da miséria, o pretexto demagógico e safado de servir aos que perpetuam, na cidade como no campo, a sede, a fome e a miséria do povo; agora que as tropas e as máquinas do exército já se acham escavando o canal do engodo, mais uma vez no cumprimento de ordens das cúpulas autoritárias, que mudam de nomes, de sigla, de figurino, de verborragia, de paus-mandados, porém nunca mudam de alvo, que é encher as burras e fazer o brasileiro de burro; agora que no Médio e Alto São Francisco os barranqueiros ainda contra a extensão da corrente das águias, se de fato houvesse a certeza e a segurança de que os principais beneficiados seriam os deserdados da seca – certeza e segurança essas impossíveis de se afirmar na consciência do povo, tendo em vista o precedente histórico das decisões de cima pra baixo em nosso país, todas feitas à base de promessas grandiosas, de garantia de dádivas, acenando com a esperança e a melhora de vida para os pobres e se efetivando com o agravamento das condições de baixo e o proveito superlativo das condições de cima, a multiplicação da carência para os que nada têm e a multiplicação de excedentes para os que tudo retêm; precisamente agora, no rumor deste momento, a voz de Domingo Diniz se ergue em coro com os que protestam contra o desvio enganoso do curso do rio e se eleva num solo particular a favor dos que por tantos e tantos anos labutaram na navegação do São Francisco e cujas vozes o Tempo vai apagando na colheita silenciosa das idades.



Tenho lido constantemente textos de Domingo Diniz sobre o rio e suas barrancas, as subidas e descidas das águas, os peixes, as canoas, o sobrevivente  Benjamin Guimarães, os animais da terra, as plantas, as frutas, a desolação dos cerrados, as gentes e suas modas, seu presente e suas tradições. O que ressumbra destes textos é aquele sentimento de identidade e posse que faz com que um homem seja uno com a sua região; que ele está nela, assim como ela está nele; que o homem é dono da terra e a terra é dona do homem; intimamente dividem e usufruem o mesmo eu; aquilo que fez Guimarães dizer: “O sertão é dentro da gente”.



Aliás, este é o sentimento de mais dois escritores de Pirapora – Zanoni Neves e Sávia Dumont. São três barqueiros do tempo e do espaço, três navegantes de alada embarcação, a percorrer a extensão sinuosa do Velho Chico, a pescar o que é vivo e vivido em suas imagens, catando cores, imagens e lembranças e guardando no bornal, e depois transfigurando em palavras, às vezes livros, às vezes artigos avulsos, às vezes quadros bordados com agulha de ouro – como é a maior parte da obra de Sávia. Neles encontro ou reencontro as barrancas em estado de imanência: transpira de suas obras uma emanação interior que vem do coração do rio, do útero das águas; o que há nelas de espírito, há também de emoção; aquela consciência crítica que é tanto bem-saber quanto é bem-querer; aquilo que é compreensão e que é ternura; o que é visão e o que é amor.



Domingos fez a gora uma colheita de sons: gravou um número expressivo de entrevistas com os velhos navegadores do rio, depoimentos dos últimos tripulantes dos vapores e das barcas que subiam e desciam o São Francisco e que, de viva voz, deixam para o presente e o futuro o testemunho do passado. Este inventário precioso, esta rica safra da memória acha-se ainda em fase embrionária; é necessário um acabamento técnico e gráfico só possível com um patrocínio para a finalização da obra.



São as últimas vozes da navegação do Velho Chico. São os veteranos da labuta das águas que estão indo embora e que, assim como os vapores e as barcaças, correm o risco de desaparecer sem deixar vestígio. É um trabalho de utilidade superior, de necessidade urgente, pois a maioria dos entrevistados está com mais de 90 anos. Não foi possível a Domingo falar com  todos, gravar entrevistas com todos. Ainda há muito o que fazer neste particular.



Eis um projeto de importância maior para a cultura do país. Afinal, o São Francisco banha cinco estados da federação. Também de primeiríssima importância para Minas Gerais: temos nele o testemunho verbal dos que fizeram história numa região de extensiva expressão cultural do Estado. Num momento em que as empresas passam a investir  em trabalhos artísticos e sociais, em que as entidades ligadas à cultura e educação priorizam o levantamento de nossas tradições e costumes, o exame e o apoio a este projeto serão provas de competência e sensibilidade da parte dos responsáveis  pela aprovação das propostas que lhes chegam às mãos.



Os vapores do São Francisco foram exterminados de maneira selvagem por predadores que ignoram criminosamente o valor daquelas embarcações para a memória do povo das barrancas. Domingos Diniz agora luta para salvar a voz dos últimos navegantes, num esforço notável que merece a adesão de todo brasileiro, para que sobre alguma coisa viva do grande rio, antes que soterrem de vez o curso de suas águas.

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