Travessia

Leila Silveira/ Délcio Fortes
13/04/2019 às 07:31.
Atualizado em 05/09/2021 às 18:13

Assistindo à semifinal do “The Voice Kids”, nos emocionamos ao ver uma menina cantar “Travessia”, de autoria de Fernando Brant e Milton Nascimento, que ganhou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, exibido em 1967 pela mesma emissora, direto do palco do Maracanãzinho lotado, no Rio de Janeiro.

Apesar da emoção, do timbre, da performance da intérprete, ficamos imaginando o que de fato ela estaria sentido ao cantar aquela música tão emblemática daqueles anos de chumbo... O que passava pela cabeça dos ouvintes da plateia, dos telespectadores, especialmente dos jovens brasileiros que felizmente não tiveram que enfrentar os duros tempos da ditadura...

Até hoje, “Travessia” é lembrada e estudada em todas as suas dimensões... Líricas, melódicas, harmoniosas, já que representou algo totalmente novo, pois não se assemelhava a nada que até então nossos ouvidos estavam acostumados a consumir, como samba, samba-canção, bossa nova, rock, baião ou qualquer outro gênero musical... Além do mais, o timbre da voz de Milton era algo de inovador e assustador também, o que deixava a todos perplexos e extasiados...

Mas quero me ater mais aos versos do poeta...

Unindo a sutileza, força e dramaticidade, a letra narra a antevéspera da escuridão que se abateu sobre o país, quase adivinhando a edição do AI-5 promulgado em 1968 pelo general Costa e Silva, fechando o Congresso, calando a imprensa e dando plenos poderes para que fossem realizadas prisões arbitrárias a todos os que se colocassem em oposição ao regime militar.

A voz grave e cortante reconhece a perda do dom mais precioso para o ser humano: a liberdade, materializada na perda da casa, já não mais segura, na perda do espaço, já não mais acessível, na perda da alegria, já não mais possível, na perda da paz, já não mais factível.

Porém, ainda restava a esperança, cravada em um caminho tortuoso e difícil de pedras, que muitos optaram por trilhar a custa de suas próprias vidas... Caminho que provocou esquecimentos, despedidas, sangue, suor e lágrimas... Trilha que não deixava alternativas para continuar a viver a não ser no sonho feito de brisa que alimentava as ciladas e prisões do sol do meio-dia... Trajetória marcada pela coragem de querer continuar o canto, soltando a voz nas estradas sombrias da clandestinidade, que marcou o pranto da resistência dos que preferiram a morte que o vento vem terminar...

Faz mais de meio século que Milton assombrou o Brasil entoando sua poderosa voz até então desconhecida, como a anunciar que algo novo estaria sendo gestado...

O anúncio, diante das incertezas, do medo, da covardia, da brutalidade era de que, apesar de tudo, a voz não iria calar... Apesar de tudo, o amor iria prevalecer... Apesar de tudo, valia a pena querer viver e lutar!

Acordando para a realidade, trocando o sonho pela ação, “Travessia” continua a ser um exemplo de fé no porvir, um tributo de amor aos que partiram, uma reflexão permanente frente aos novos desafios que enfrentamos na construção de uma verdadeira democracia no Brasil.

Cuide bem de sua travessia!

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