Imagine a cena: o sol tímido do amanhecer se esgueira pelas ruas abarrotadas, enquanto a cidade desperta em um compasso descompassado. Veículos individuais tomam o asfalto como reis de uma monarquia desordenada, cada um em seu próprio ritmo. No horizonte, o transporte coletivo observa silencioso, desafiado, e em muitos casos, esquecido.
O Brasil está trocando os ônibus por aplicativos, carros e motos. Dados recentes mostram que, nos últimos sete anos, o uso de ônibus como meio principal de transporte caiu de 45,2% para 30,9%. A promessa de conforto, flexibilidade e rapidez oferecida por outras opções seduz o passageiro comum, mas a comodidade tem um preço, e ele será pago em congestionamentos, emissões de carbono e no colapso da mobilidade urbana.
Nosso problema é estrutural e histórico. O transporte coletivo foi projetado para ser financiado pelo usuário pagante, mas a matemática deixou de fechar faz tempo. Enquanto isso, as gratuidades aumentam e a qualidade, bem, essa tropeça na falta de investimentos e em gestões, digamos, pouco inspiradas. Sem corredores exclusivos, sem pontualidade, sem previsibilidade e, muitas vezes, sem segurança, os coletivos perdem a corrida para as alternativas individualizadas, que oferecem exatamente o que o passageiro procura: uma boa experiência.
Mas será que essa troca é sustentável? O aumento no número de veículos individuais já é notório. Aplicativos de transporte, praticamente inexistentes há sete anos, agora respondem por mais de 11% das viagens. Carros e motos ganham protagonismo, mas a infraestrutura urbana não acompanha. As cidades não têm espaço para todos. A equação é simples: mais veículos, menos mobilidade.
Ainda assim, há esperança. Mais de 63% dos usuários que abandonaram o ônibus dizem que voltariam se os problemas fossem resolvidos. Segurança, previsibilidade e conforto são os pilares que podem resgatar o transporte coletivo. E aqui entra o papel indispensável de quem toma as decisões: o transporte público precisa ser priorizado.
Isso significa investir em corredores exclusivos, modernizar as frotas, garantir acessibilidade e oferecer informações claras e precisas aos passageiros. Significa também fomentar parcerias entre o público e o privado, porque soluções que exigem grandes transformações só se concretizam com a soma de forças.
Sem essas mudanças, corremos o risco de transformar a mobilidade urbana em um grande paradoxo: a busca por mais agilidade nos levará a uma paralisia coletiva.
Se quisermos que nossas cidades continuem a pulsar, será preciso muito mais que um clique no aplicativo. Será preciso reconstruir a confiança no transporte público, para que ele volte a ser não só uma opção, mas a escolha óbvia e sustentável. E para isso, não dá para esperar mais um ônibus que já está atrasado.
*Jornalista/Radialista/Filósofo