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Domingo,24 de Novembro

Gente humilde

Mara Narciso - Médica e jornalista
O Norte - Montes Claros
20/11/2018 às 05:44.
Atualizado em 28/10/2021 às 01:54

A meritocracia é uma exceção, não regra, por isso se pede por políticas públicas de relevância, enquanto meus olhos se voltam para a população em situação de rua. É inadequado referir-se a essa gente humilde, que tem se multiplicado pela cidade, como “moradores de rua”. Morar é ter residência, habitar, residir. Na mente de uns, a pessoa não teve oportunidades na vida, para alguns, é fruto do destino. Outros falam em penitência por erros em vidas passadas ou que deve ter sido expulso de casa porque não presta ou é usuário de drogas ou é porque é apenas preguiçoso e miserável vagabundo.

São tantas as histórias de vida. Criança costuma sensibilizar. Adultos não podem explorar criança usando-a para pedir esmola. Agora, o que se vê nas esquinas de Montes Claros são levas de jovens, alguns estrangeiros, fazendo malabarismos com bolas, facas ou malabares, em busca de moedas. A maioria dos motoristas fecha os vidros e ignora o show que tenta atrair olhares.

O que se passa na mente de alguém que está em situação de rua e pede pela primeira vez? Quais sentimentos o atormentam? Onde coloca sua dignidade? A precisão esconde a dor da humilhação. Outros são teatrais e criam um personagem. Quando ficam muito conhecidos em um lugar, mudam-se para outro ponto. Os desprezados estão mudos, enquanto o desprezo da sociedade berra. Quer ver-se livre do incômodo e, sendo possível, levantar um muro de concreto, definitivo e higienizador. Esconder o feio e sujo, para as autoridades, resolve parte do problema.

Quando menina eu brincava de pedir esmolas, impressionada com os pedintes. As mulheres levavam consigo velhas cestas de taquara com embrulhinhos em papéis sujos e amassados. Naquele tempo não havia essa profusão de plástico. Em cada casa, a esmoler batia palmas na porta e gritava: dona, uma esmola, pelo amor de Deus! Qualquer coisa serve. E o morador vinha trazendo um pedaço de pão velho, de vários dias, ou uma meia cuia de farinha de mandioca ou arroz cru de terceira. A pedinte recebia e embrulhava a doação num pedaço de papel sujo de gordura e amassado. Até jornal servia. Ou então recebia um resto de comida velha e fria, arroz cozido, misturado com feijão, macarrão, abóbora ou caldo de frango, que era jogado dentro de um saco plástico, com uma aparência horrível, como um vômito. Algumas tinham latas de goiabada, à guisa de pratos. A ânsia era tamanha que avançavam na comida com as mãos ali mesmo. Quem esmolava, ou seja, socorria dando esmolas escutava: “Deus te ajude”. E respondia: “amém”.

Alguns só queriam dinheiro. Poderiam comprar cachaça, mas não se falava em drogas. As pessoas acreditavam umas nas outras e sofriam com a situação do pedinte.

De costas para os passantes, alguém faz sua comida na calçada, vivendo na sujeira, com roupas rasgadas, sem cama, sem banheiro, sem comida, sem nada. Essa tragédia é sina? É humilhante despir-se de si, pedir uma moeda, roupa velha ou comida, como um cão sem dono. Se por um lado, muitos não querem ver essa gente, por outro há quem pense em ajudá-la, tirando de si para dar ao próximo, reduzindo-lhe a dor e o sofrimento. A caridade é uma ação civilizadora. E libertadora!

 

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