Délio Pinheiro, jornalista e radialista da Itatiaia *
Há aproximadamente duas semanas eu, acidentalmente, atropelei um homem. Na verdade um velho. Ao que tudo indica um trabalhador. As indicações eram a marmita que ele levava com sua ração diária e seu olhar de gente honesta. Anônimo e desdentado. Ele surgiu numa esquina com sua bicicleta e eu não consegui frear a tempo. Seu corpo mole foi abalroado, como diria um policial, por minha moto. Mas não houve ocorrência policial e nem ajuntamento de pessoas. Era um domingo e isso foi fundamental para o acidente não se transformar num circo.
A bicicleta do velho ficou com a roda empenada, sua perna ficou bamba, de dor e de espanto. Além de sua marmita, também uma manga que ele levava, possivelmente para a sobremesa, também voou na imprecisão da queda e chocou-se com o asfalto quente.
Pensando bem, eu desconfio que ele era um segurança noturno, ou algo assim. Tive muita pena dele, principalmente por seu sorriso adunco, surpreso e dolorido. Sorriso constrangido de quem não tem uma vida fácil. Perguntei se ele queria ir no médico para examinar a perna e ele disse que não precisava, pois precisava chegar logo em seu trabalho. Sim, ele disse que trabalhava. Intuí que o seu receio era bater o relógio de ponto com mais de quinze minutos de atraso e perder o dia. Então ele dispensou os cuidados médicos.
Ele, definitivamente, não tinha uma vida fácil. Eu também não tenho. Desconfio, de verdade, que pouca gente tenha. Não me refiro exclusivamente a dinheiro e a status. Isso talvez seja o mais fácil de se conseguir, enquanto que equilíbrio, saúde e consciência limpa são coisas dificílimas, relegadas a poucos. O poeta russo Maiakovski escreveu certa vez: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Talvez algum dia o encontre por aí, mas não numa esquina na urgência do trânsito e não em escritórios de patrões que cortam o dia de trabalho de gente como o Geraldo. Sim, decidi chamá-lo assim, embora ele não tenha, em nenhum momento, me dito seu nome.
- E que nenhum bandido, por exemplo, tenha a idéia de roubar a empresa...
Voltemos ao acidente. Na hora do impacto também senti a dor do velho, e também fiquei trêmulo e pouco articulado, como ele. Foi quando percebi que, no fundo, minha alma, aliás todas as almas, são anônimas e desdentadas, assim como a do Geraldo. Somos todos freqüentadores do imenso carrossel que é a vida. E quando uma peça se solta fatalmente outras peças serão atingidas, em sua trajetória assimétrica.
Hoje só me resta torcer para que Geraldo, que foi para seu emprego de merda, empurrando sua bicicleta com a roda empenada e levando o que restou de sua marmita e sua manga, possa ter muitas noites de vigília feliz. E que nenhum bandido, por exemplo, tenha a idéia de roubar a empresa, pois conhecendo o Geraldo como eu conheço, eu sei que ele irá defender com unhas e dentes o patrimônio do patrão.
Tomara de verdade que suas noites de trabalho sejam dignas e que ele possa saborear muitas mangas suculentas em seus momentos de sonho, instantes em que ele é o patrão, dono daquela empresa, jovem, com todos os dentes e vivendo como alguém feliz no Brasil, como um dia imaginou Maiakovski.