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Sábado,22 de Novembro

Amor em pedaços

Jornal O Norte
Publicado em 18/10/2011 às 19:02.Atualizado em 15/11/2021 às 06:08.

Mara Narciso*



Relembro com saudade o grande amor, pensando sobre o que é dar certo. Ele era um rapaz de 20 anos, que bebia e fumava. Tinha tido muitas namoradas e passava os fins-de-semana em shows, namorando, cantando e dançando. Eu era uma virgem ingênua, de 18 anos, que nunca tinha cortado os cabelos (chegavam abaixo da parte de trás dos meus joelhos). Eu me resguardava pura para o casamento. O corpo é a morada do Senhor e eu me vestia conforme a doutrina da minha crença. Usava vestidos cobrindo os joelhos, com mangas, e sem decote. Era orientada a não ter vaidade, nem usar esmalte, nem maquiagem, e nem pinçar as sobrancelhas. A minha família seguia esses preceitos, que sempre foram e sempre serão verdades para mim.



Com vidas diferentes, conheci o meu amor por acaso. Gostamos um do outro, mas era preciso que meu pai permitisse o namoro e para tal ele teve de se converter à minha religião evangélica. Assim fez. Mostrou-se satisfeito em ingressar na minha igreja. Namoramos, noivamos e nos casamos. Éramos apaixonados, e nossa vida de casados era boa. Morávamos bem. Íamos juntos ao culto. Meu marido abandonou os vícios. Trabalhava bastante e fomos prosperando. Chegaram três filhos, e mantive a tradição familiar dando-lhes exemplos e ensinamentos.



Sempre em casa, cuidando de tudo, parei os estudos e não fui trabalhar. A dedicação a família foi integral, zelando pela moradia, a comida, as roupas e as crianças. Era caprichosa comigo, porém com o tempo notei que meus atrativos não mais supriam as necessidades do meu marido, que passou a mostrar-se insatisfeito, depois arredio e por fim distante.



Rompeu com a igreja e os vícios voltaram. Não mais saía comigo. Passou a criticar os meus modos, vestimentas e crenças. Dizia que as minhas roupas eram feias, e que precisava de uma mulher que o acompanhasse aos bares, boates e festas. Gostava de dançar e foi afastando-se mais. Então, parou de me procurar, abandonando-nos em seguida. Nossos filhos estavam quase criados e nós dois com 38 e 40 anos, respectivamente.



Meu agora ex-marido, para minha vergonha, pediu o divórcio, e arrumou uma mulher que é como ele desejava. Sozinha, entrei em pânico e para tentar reconquistá-lo pensei bobagens, tentando transformar-me em algo que nunca fui e nem quero ser. A minha maior insanidade foi cortar os cabelos na altura dos ombros e fazer luzes. Precisava me mostrar, aparecer para ele, tentar atraí-lo. Desesperada, entendi que ele nunca mais voltaria, e que os meus cabelos, admirados no começo, por serem pretos, lisos e cheirosos, e que me cobriam quase todo o corpo já não eram nada. Apenas um arremedo do que tinham sido. O desespero atingiu seu grau máximo. Parecia que eu me tornara louca. Estava com a mente partida, em crise existencial, com dupla identidade ou pior, querendo algo que nem eu saberia explicar.



O chão sumiu, e, suspensa no ar, me debatia, sentindo o sangue ferver pelo corpo numa agonia sem fim. Mal dormia e muito comia. Com o excesso de alimento eu buscava me reequilibrar, cair em mim, sobreviver.  Passei a engordar, rapidamente no ritmo de um quilo ou mais por mês. A única coisa que me acalmava era sentir o estômago cheio, explodindo. O alimento era refúgio, consolo, companhia e sexo.



Os filhos se assustaram em me ver comendo e repetindo, enchendo a minha existência com comida. As roupas não mais me serviam. Fui comprando umas poucas, pois a vaidade, que nunca fez parte de mim, sumiu. Tanto faz, como tanto fez. E daí? E para quê? A religião, no entanto, manteve-me viva. Nela achei esperança e paz. Quanto a minha crença, nada mudou. Mantive-me firme em minhas certezas.



Em relação ao corpo, ele precisa ser cuidado e respeitado. Por isso decidi emagrecer os 20 quilos que ganhei. Meu coração precisa melhorar. Amo e sofro, porém mantenho-me digna. A loucura de cortar os cabelos doeu forte, mas eles crescerão. Agora eu sou um amor em pedaços, e isso não é nada doce.



*Mara Narciso é médica e jornalista – 12 de outubro de 2011.

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