A velhinha de Itajaí

Jornal O Norte
Publicado em 03/03/2009 às 09:26.Atualizado em 15/11/2021 às 06:51.

Luciano Pires


Jornalista, escritor, conferencista e cartunista www.lucianopires.com.br



Quem será que cria aquelas propagandas de lojas de varejo que infestam a televisão? Aquelas coisas tipo Casas Bahia, Lojas Marabras, Lojas Mariza e outras que ocupam um espaço publicitário gigantesco com tanto mau gosto? É sempre a mesma coisa: um sujeito pretensamente simpático ou um casal jovem e risonho falando alto e rápido sobre as maravilhas daquele jogo de sofá que só amanhã você pode comprar em cento e trinta e duas parcelas de oito reais e oitenta centavos...



Busquei na memória e vi que sempre foi assim. Os mais antigos lembrarão da quinzena de tapetes do Mappin. Dos ternos da Ducal. Das Lojas Brasil, onde “você leva o Brasilino de presente”... (Aliás, há anos tento encontrar um boneco do Brasilino pra comprar e não acho. Você sabe onde tem?)



Pois no final de 2008 durante um telejornal assisti chocado às imagens das inundações em Santa Catarina. Uma tragédia imensa e - como a maioria das tragédias brasileiras - previsível. Pessoas perdendo parentes, perdendo casas, perdendo tudo... Uma das cenas, em Itajaí, mostrava uma velhinha voltando para casa e vendo seus móveis, televisão, geladeira, tudo destruído. A expressão daquela senhora tinha a dor da desesperança que só as tragédias conseguem forjar. Doeu em mim. A última imagem mostrou-a desolada, olhando seu jogo de sofás, que ela dizia que tinha acabado de comprar, coberto de barro. Destruído.



Pausa para o comercial.



Casas Bahia. Um sujeito histriônico, de paletó vermelho, cabelo e sobrancelhas pintadas, rosto de plástico, falando alto, quase perdendo o fôlego e mostrando as ofertas imperdíveis enquanto ao fundo uma horda de consumidores fingia comprar tudo que podia. Entre as ofertas imperdíveis, um conjunto de sofás parecido com o da velhinha de Itajaí... Em seguida vem o anúncio do automóvel que eu tenho que comprar. E depois do celular que vai resolver todos os meus problemas. Então vem aquele banco que é o melhor lugar do mundo. Todos repletos de mulheres maravilhosas, homens jovens e sorridentes, crianças inteligentes e velhinhos pensando que têm trinta anos de idade. Uma maravilha.



Volta o noticiário.



Gente morrendo na troca de tiros durante a invasão do morro no Rio de Janeiro. E agora ao vivo a repórter trazendo as últimas da inundação.



Dó...



Num instante estou no mundo real, entre tragédias e tiroteios, dor e sofrimento, refletindo sobre como tenho sorte em ser quem sou, morar onde moro e trabalhar onde trabalho. No instante seguinte sou jogado para outro mundo, onde passo a refletir sobre como é pouco o que tenho, como eu poderia ser melhor se comprasse aquela roupa, aquele carro, aquele celular. Então outra vez o mundo perigoso. E depois o mundo do glamour... E assim vai. Viajo sem parar entre dois mundos antagônicos, um renegando o outro. Vou dormir com a mente confusa. Não sei qual dos dois mundos venceu o “round” de hoje. E amanhã de manhã vai começar tudo outra vez: a velhinha perdendo o sofá e o moço vendendo um sofá.



Aqueles dois mundos antagônicos são representações do mundo real. Cada uma com um ponto de vista, um filtro, uma lente. O mundo dos noticiários quer nossa atenção, nos segurar até a chegada do mundo dos comerciais, que pretende que compremos! E os editores usarão de todos os recursos de drama, imagens, sons e edição para nos conquistar... No vaivém entre os dois mundos estão nossas escolhas. O que fazer com os estímulos que recebemos de cada um deles? Provavelmente arregalar os olhos diante das tragédias e voltar ao trabalho pra poder ir às compras.



É essa a rotina de nossas vidas, não é?



Mas tudo bem... Quem sabe alguém decide comprar nas Casas Bahia um sofá novo pra velhinha de Itajaí.

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