A traição de Capitu

Jornal O Norte
31/12/2008 às 11:02.
Atualizado em 15/11/2021 às 06:48

Osmar Pereira Oliva


Professor do Departamento de Comunicação e Letras da Unimontes

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...

Um livro nas mãos nos lembra uma relação amorosa, um encontro, dois corpos, as carícias, e um narrador a sussurrar em nossos ouvidos todos os segredos que nos fazem sentir ódio ou compaixão. Um livro nas mãos rompe as fronteiras do espaço e destitui do tempo qualquer sobreposição contínua. Um livro nas mãos desperta nossos sentidos todos, e todos os nossos sonhos. Um livro nas mãos é sempre possibilidade de uma história que nos quer seduzir.

Capitu – você já reparou nos olhos dela? São assim, de cigana oblíqua e dissimulada...

A traição de Capitu é uma história que ouvi na minha infância pobre, e cujo livro meu pai carpinteiro deu-me de presente. Uma história de amor, de amizades e de ciúmes. Uma história de ambição. Para Bentinho, uma história-fundação posto que, ao contar, tenta reconstituir os fragmentos de sua vida e dar um sentido para tudo o que viveu, até tornar-se um homem solitário e casmurro.

Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que nós éramos homens, e crescia por todos os lados. Há quase 110 anos, repete-se essa história e ainda se quer provar que Bentinho fora traído pela sua primeira amiga. Minha filha, de doze anos, certa de minha paixão pelo extremoso Machado, indagou-me se era verdade que Capitu havia traído seu marido, pois em sua escola houve mais um julgamento dessa silenciosa personagem. Respondi-lhe que mais valia compreender o motivo da escrita do romance do que encontrar um culpado para essa triste história de amor. A história de Capitu é uma história do ciúme e da dúvida – e em que isso esclarece para a compreensão do romance machadiano? Nada, a não ser que a alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de conventos e prisões.

O que a minissérie Capitu demonstrou, em seus capítulos iniciais, é o quanto a traição de Capitu é intraduzível. O hibridismo da nova cigana de olhos oblíquos e dissimulados achincalha uma boa história de amor porque tenta transpor para o gênero televisivo a ópera enquanto gênero – literário ou teatral – quando Bentinho, de forma profundamente complexa, comparava a sua vida a uma ópera, no sentido de que há disputas entre as várias vozes que compõem a orquestra do seu ser. Ainda assim, a ópera que rege a vida de Bento Santiago empresta-lhe uma conotação trágica, já que sua tentativa de recompor a adolescência na velhice é um projeto fracassado, e essa lacuna é tudo. Se lhe faltassem os outros, conformava-se, mas faltava a si mesmo. A ópera que se quis representar na minissérie que ora se inicia é uma ópera bufa, em todos os seus sentidos. Diretor, roteirista e atores compõem uma bizarra encenação que em nada combina com a brilhante criatividade desses artistas. Um Bentinho adolescente desprovido de qualquer verossimilhança com a narrativa machadiana, a não ser a sua feminilidade, excessivamente demarcada nessa nova versão, quando no texto literário é mais sugerida. Um Bentinho adulto bufo, ridículo, mais para Curinga do que para um tão bem ensimesmado narrador. Compreende-se, já nos primeiros capítulos, a intenção do diretor da minissérie: retirar a culpa da traição de Capitu e forçar o espectador a crer na loucura estravagante, espalhafatosa e bizarra de Bento Santiago. Proposta interessante – a de lidar com a possibilidade da loucura, visto que os limites entre ciúme e insanidade sejam bastante tênues. Mas a loucura que esse Bentinho televisivo nos passa é tristemente risível. O contraste de gêneros (romance, ópera, minissérie) é agravado pelo contraste musical (rock contemporâneo e música clássica). Mas ainda bem que Tchaikovski salva a minissérie do absolutamente absurdo. A música Allegro non troppo evocou o drama do solitário narrador machadiano que compara sua vida a uma ópera, no sentido mais fiel que essa


comparação possa ter, e ficam dispensados todos os fantoches que encenam essas tristes figuras televisivas. Escandaloso é também o artifício desse outro narrador que anuncia os títulos de cada capítulo os quais, além de virem escrito na tela, são trazidos desgraçadamente aos nossos ouvidos pela voz de uma espécie de locutor que apresenta um quadro horrífico ou uma pobre mágica, suja e esfarrapada. Enfim, depois de mais de um século, a Globo revelou, inquestionavelmente, a verdadeira traição de Capitu.

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