Felippe Prates

Dizia Mark Twain, o famoso escritor americano, autor dentre outros livros de “As aventuras de Tom Sawyer” e  “Huckleberry Finn”, acontecidas às margens do rio Mississipi e a bordo dos navios que singravam suas águas, que deixar de fumar é muito fácil, pois ele abandonára esse vício cinqüenta e duas vezes...  Ou seja, fumou enquanto viveu.  Da mesma forma, parar de beber, de vez, depende de uma força de vontade especial, que poucos possuem.  Ouve-se, amiúde, que determinado cidadão não bebe mais  –  também não bebe menos... 

Em 1921, fundou-se em Montes Claros a Liga Contra o Álcool.  Durou pouco, no entanto, porque a maioria dos sócios estava renovando com muita freqüência os seus pedidos de licença, para matar as saudades...

Zé Aparecido era um relojoeiro dos bons.  A sua pequena loja, na rua Dr.Veloso, tinha muito movimento e era procurada por donos de relógios renomados, Omega Ferradura, Pateck Philippe, Rolex e outros, buscando um serviço bem feito, garantido.  Mas, a bebida começou a prejudicar o desempenho profissional de Aparecido.  A mão lhe tremia, quase sem controle, comprometendo o trabalho que demandava, além de boa visão, pulso firme para manejar as delicadas ferramentas próprias do ofício.

Já cinqüentão, vista cansada, Zé Aparecido passou a usar óculos e para que voltasse a ter o prestígio e o renome que sempre mereceu, resolveu parar definitivamente com a bebida e até fez promessa para São Benedito, com o testemunho de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos familiares.

Um belo dia, era domingo, os seus óculos sumiram e sem eles o Zé tornava-se um inútil.  Botou o pessoal de casa doido, de tanto procurar, olhou cuidadosamente na loja, nos lugares por onde andou, em vão!   Muito infeliz, enxergando quase nada, eis que acha uma meiota de garrafa de Viriatinha, a saborosa pinga da nossa terra, remanescente de outros tempos.  Tirou a rolha, sentiu o rico cheiro da “marvada” e a boca se lhe encheu dágua.

Para amenizar o aborrecimento que lhe causára a perda dos óculos, Aparecido resolveu tomar  uma dose da cachaça, umazinha só, sem exemplo, mais nenhuma, ninguém se quer notaria...  Disfarçadamente arranjou um copo, foi para o seu quarto, trancou a porta, sentou-se na beirada da cama e serviu-se da bebida que “rosariou” no copo.  Já meio arrependido, antes do primeiro gole ergueu os olhos para cima pedindo perdão a São Benedito e a Jesus pela iminente quebra da promessa.  Nesse instante, viu em cima do guarda-roupas, bem na quina, a pontinha das hastes dos seus procuradíssimos óculos.  Graças às suas orações, até que enfim os encontrára!

Zé Aparecido aprendera desde o catecismo que os caminhos de Deus são imprevisíveis!  E,  naturalmente, tomou aquilo como uma mensagem chegando do Altíssimo, via o seu guarda-roupas, um aviso, uma bênção para que voltasse a molhar a palavra, sinceramente possuido daquela “isenção” própria dos apreciadores de uma boa cana pouco chegados a recessos...

Temente a Deus, católico praticante, ex-coroinha do padre Dudú, capeta para debulhar um rosário, Zé Aparecido, num arrebatamento íntimo, quase em êxtase, considerou uma blasfêmia desatender aos desígnios superiores, benzeu-se, beijou a mão, tomou a meiota de Viriatinha com contrição, vestiu-se e foi acabar de cumprir a “missão” no bar do Raphael Reys, na esquina de casa.  Era uma dose de cachaça e um “Glória ao Padre”, variando, às vezes, para um “Em Nome do Padre”, tudo com muita fé!

Consta que, enquanto tomava com devoção inúmeras branquinhas, feliz da vida, até filosofando, foi interrompido por um anônimo, um gozador inconveniente, que da rua lhe perguntou, aos gritos:

-  Tá quente, seu  tenente?

Contra a entrega, em cima do pedido, na hora, lá de dentro do bar Zé Aparecido exclamou:

- Não!  Tá morno, seu corno...

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