A Líbia de todos nós

Jornal O Norte
Publicado em 15/03/2011 às 09:45.Atualizado em 15/11/2021 às 17:23.

Sérgio Murilo (*)



Recentemente, numa noite de segunda feira, fui comprar um lanche em uma lanchonete qualquer, aproveitando o intervalo entre dois compromissos. Após escolher o que queria, aproximei-me da televisão. Passava um noticiário no momento e eu estava ansioso para acompanhar as últimas notícias a respeito das revoltas árabes, em especial sobre a Líbia. De fato, era o que se noticiava, mas foi impossível acompanhar completamente a reportagem, o barulho de conversas e de risos preenchia de tal maneira o recinto que sufocava até mesmo o som da televisão, que não estava em baixo volume. Olhei em volta e vi diversos grupos de pessoas dispostas em círculos, a maior parte destas aparentando ter entre dezoito e vinte e dois anos. Rapazes se achegavam a garotas, amigos e amigas riam e gesticulavam uns com os outros enquanto conversavam, ignorando a distante Líbia expressa num noticiário qualquer de segunda.



Penso comigo se sou idealista demais, ou se estou por demais alienado em relação às condutas sociais. Socializar é muito bom; namorar ou cortejar as garotas é melhor ainda, mas, francamente, os recentes eventos que acontecem no norte da África são tão desimportantes assim, ao ponto de não merecerem um olhar sequer, uma mínima fagulha de curiosidade que seja? Nos países árabes, ocorrem agora eventos que provavelmente vão redesenhar parte da geopolítica do planeta, vão desconstruir paradigmas e vão ter uma relevância na história da humanidade comparável à Revolução Francesa ou à independência dos Estados Unidos. Pode-se às vezes conceber uma ilusão de pouca relevância em relação a esses acontecimentos, diante do fato de que se trata de países de outros continentes, geograficamente distantes do nosso, mas é uma percepção falsa. Já o seria antes do advenho da internet e com o surgimento desta o é mais ainda. As informações na atualidade têm potencial para alcançar rapidamente as demais regiões do planeta, e as repercussões ligadas a sua difusão também tende a se manifestar mais rápido. Já se podem observar repercussões destas revoltas em outras partes do globo. Na Itália, no dia 13 de fevereiro deste ano, um movimento encabeçado por mulheres organizou um protesto contra o seu primeiro-ministro, Silvio Berlusconi, cobrando mais moralidade do governo. Seu mecanismo de mobilização foi similar ao utilizado por jovens árabes contra as autocracias norte africanas. Foi também este o mecanismo de mobilização, o utilizado aqui em Montes Claros, para o movimento “Fora Tadeu”.



Eu não ousaria dizer que o jovem brasileiro da atualidade é totalmente despolitizado, escravo de uma cultura de massa, mas observa-se que parte expressiva das pessoas, o que não é exclusividade da Juventude, se acomoda muito bem ante esses mecanismos de massificação. Há uma tendência forte de se concentrar na figura que se expõe e de se ignorar o que vem a fundo. Tem sentido preocupar com os problemas corriqueiros, em tomar a fila do hospital e em pagar as contas. E tudo o que não está diretamente ligado à nossa rotina é simplesmente algo que “não vai fazer diferença nenhuma na minha vida mesmo”. Acaba que, deste modo, se assume valores dados, não se reflete sobre eles; vota-se nas eleições por obrigação, escolhendo o menos ruim, porque “todos os políticos são ladrões mesmo”, ignorando uma reflexão mais aprofundada do sistema político em si; ignoram-se eventos importantes que lhes chegam aos ouvidos, simplesmente porque eles não aparentam fazer parte do dia-a-dia.



Pode-se dizer que a diferença mais marcante entre os seres humanos e os animais é que estes imergem na existência, guiados principalmente pelos seus instintos, ao passo que aqueles são construtores de sua existência, produtores de sua relação como mundo. Um cão que viva aqui terá um comportamento extremamente parecido com um cão que viva na china, ou em qualquer outra parte do planeta, se não idêntico; mas isto não vale para o homem. O homem é um ser cultural que constrói e reformula sua relação com a natureza e ao mesmo tempo a transforma. E o que mais me assombra é o pensamento de que quando alguém ignora a sua própria história, abre mão de ser participativo e atento na construção de sua sociedade, no mundo a sua volta. É como se a pessoa abrisse mão de um pouco de sua humanidade também, como se ela se animalizasse um pouco. Em alguma medida, ignorar a sua história, o contexto em que vive é como ser um pouco menos livre também. No pensamento de Aléxis de Tocqueville, um homem livre é participativo na construção de sua sociedade. Ser livre requer coragem na concepção de Tocqueville. Acredito que ele estava certo. É necessário ser corajoso para romper com postulados comodistas disfarçados de valores e tradições, é preciso coragem para se dispor a questionar o que ocorre na sua comunidade, ainda que a custo de ser ameaçado por capangas de algum retrógrado que permanece no poder. É preciso coragem para dar atenção à distante Líbia, que num ímpeto de revolta luta agora contra o domínio do ditador Muamar Gadafi.



(*) Biomédico e funcionário público

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