A difícil conquista da cidadania, por Eugênio Magno

Jornal O Norte
16/01/2007 às 13:31.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:55

As chamadas tentativas de golpe por parte de segmentos e expressivos da mídia e o pacto das elites com o objetivo de interromper o governo do presidente Lula me provocaram a fazer uma releitura do texto Cidadania a porrete, do historiador José Murilo de Carvalho, publicado no Jornal do Brasil em 18.12.1998.





O título do texto carrega o significado da agudez crítica do autor sobre essa nossa herança maldita que faz perpetuar práticas condenáveis. Se cidadania é a qualidade ou estado de cidadão, e cidadão, segundo o Aurélio, e o indivíduo no pleno gozo de seus direitos civis e políticos em um estado, ou no desempenho de seus deveres para com este, e porrete é um cacete com uma das extremidades arredondada, com a qual se bate ou se apanha, juntar as duas palavras é denunciar uma atitude de extrema perversidade. Cidadania a porrete nos convida a refletir sobre nossa trajetória histórica, marcada pelo arbítrio que martirizou tantos líderes populares em 507 anos de uma evolução sangrenta, que insiste em continuar vitimando tantos ¨brasileirinhos’.





O ex-marinheiro Ferreirinha, inspirador do texto de Carvalho, com 98 anos, viveu um quinto da idade de nosso país. Sendo ele negro, nascido apenas dois anos depois da abolição da escravatura, e tendo vivido até o limiar do século XXI, está mais do que autorizado a fazer a denúncia sobre o porrete. É sujeito-personagem dessa famigerada história real. Ferreirinha confessa que o seu gênio foi quebrado na porrada e, como quase todos os marujos da época, levou marmelo no lombo. Só assim compreendeu o que é ser cidadão brasileiro. Ao contrário de outras cidadanias, construídas tendo como base princípios de liberdade, a brasileira se fé z e continua se fazendo com o indivíduo sendo dobrado, amansado, ajustado a seu lugar, diz o artigo.





As raízes dessas distorções estão em nosso processo colonizatório. A clara dominação da cultura européia, a concentração de riquezas pelas classes dominantes e a imposição da cultura do branco sobre índios e escravos, são os motivadores daquilo que é apontado como um dos principais antagonismos do Brasil, o do senhor e do escravo, casa-grande e senzala.





O Brasil Império repetiu as mazelas do tempo colonial. A primeira Constituição brasileira foi feita de cima para baixo. A proclamação da República foi distanciada da opinião pública e logo foi instalada uma República oligárquica – de coronéis, onde a lei de ouro era “para os amigos, pão, para os inimigos, pau”.





Os pobres sempre foram criminalizados no Brasil. Para governantes como Washington Luís, a questão social era questão de polícia. Houve época em que a ação efetiva dos sindicatos era reprimida, e com a influência externa do anarquismo, do comunismo e do marxismo, os trabalhadores eram vistos como “classe perigosa”. O golpe militar de 1964 implantou no país o terror e um regime de exceção que durou 20 anos. O general Medeiros declarou recentemente que, “ao tratar com grevistas, o porrete é um santo remédio”.





Com a adoção das práticas neoliberais no país, a partir do governo Collor, agravaram-se as distorções e o cacete continuou a tinir no lombo do povo. Enquanto as propriedades rurais brasileiras continuam concentradas nas mãos dos latifundiários, mais da metade da população vive sem condições de atender às suas necessidades básicas de sobrevivência e os conflitos por questões fundiárias criam um estado de constante tensão no campo. Foi desencadeado no país um processo de flexibilização das leis trabalhistas que parece irreversível. O desemprego e a exclusão social aumentam a cada dia.





Esse estado de coisas representa uma grande porretada no lombo do povo brasileiro. A despeito das tentativas ostensivas de derrubar o líder operário gestado pelos movimentos populares, o povo contrariou a orientação dos chamados formadores de opinião e reelegeu Luís Inácio Lula da Silva para um segundo mandato. Até que surja um novo líder popular, Lula é o político que melhor encarna o ideal de esperança em dias melhores para milhões de brasileiros.





O fato de Lula ser de origem humilde, ex-operário e de um partido que conseguiu a façanha de unir movimentos sociais, cristãos – especialmente os católicos -, revolucionários, intelectuais, artistas e marxistas “atualizados” deixa as elites iradas.





Ferreirinha diz que virou cidadão no marmelo, na lambada. Para outros, foram usados instrumentos diferentes. A função do cacete é amansar os que fogem ao espírito de camaradagem que deve ser a marca do povo brasileiro. A porretada., como é dito no referido artigo, é uma paternal admoestação para o grevista, para a empregada doméstica que responde mal à patroa, para o aluno problema, para o crioulo que não sabe qual é o seu lugar na sociedade e, no dizer de José Murilo de Carvalho, “para qualquer um de nós que não saiba com quem está falando. É para quebrar o gênio rebelde e trazer de volta ao rebanho os extraviados. É um cacete brasileiro, muito cordial, é pau-brasil.”





As técnicas da paulada se diversificaram e chegaram a níveis sofisticadíssimos. O sociólogo Emir Sader está sentindo seus efeitos na pele. Lula, então, nem se fala. Se a cidadania de um operário comum é conquistada a custo de muito porrete, imagine a daquele com pretensões a presidente da República. Lula levou muita porretada, não só como candidato, mas também como presidente. E se depender das elites, vai continuar levando. Tomara que não se deixe dobrar, e aja como o povo brasileiro que, teimoso e com muito jeitinho, t em aprendido, inclusive, a se desviar de alguns porretes.





Extraído de O TempoEugênio Magno é Comunicólogo; mestre em artes

 

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