A câmara

Jornal O Norte
15/10/2009 às 10:09.
Atualizado em 15/11/2021 às 07:13

Délio Pinheiro

A Câmara de Vereadores daquela pequena cidade ficava cheia uma vez por mês. Era quando os edis se juntavam para discutir os assuntos da pauta, apresentar projetos, quase sempre inócuos, como dispor sobre a criação de novas datas municipais e atribuir nomes aos prédios públicos e logradouros diversos. Recentemente havia sido criado o “Dia do Entregador de Leite em Garrafas de Vidro” e o “Dia Municipal dos Lambe-Lambes”, embora essas duas atividades profissionais estivessem extintas na cidade. O último entregador de leite de porta em porta fora, literalmente, atropelado pelo caminhão de uma rica empresa de laticínios que comprava, a preços módicos, o leitinho produzido pelas vacas do município, e o Juca Retratista, que preservara a memória fotográfica do município nas últimas quatro décadas, caíra em profunda depressão depois que inventaram as “tenebrosas máquinas digitais”, segundo seu entendimento. Desde então ele tornara-se arredio e chegava a passar semanas inteiras no meio da mata tirando fotografias de pássaros imaginários, com sua antiga máquina, logicamente analógica.

Um vereador entrara com o projeto de denominar o alambique comunitário recém construído de “Alambique Municipal Jerônimo Pires”, uma homenagem ao farmacêutico prático da cidade, mas o tributo ficara estranho à beça, na medida em que o profissional gostava de exceder-se nos destilados e ganhara, muito a propósito e a contragosto, o nada lisonjeiro apelido de “pudim de cana”.

Em torno dos trabalhos da Câmara gravitavam algumas figuras pitorescas. Uma delas era a “Ana Doida”, que não perdia nenhuma reunião e ficava sempre na última fileira da platéia ouvindo a fala empolada de certos vereadores, transmutando-as em frases de amor em seu juízo desterrado. Ela dizia que todos os vereadores eram seus namorados, com exceção do professor de Letras, Aroldo, que era homossexual militante.

Outra figura que sempre aparecia nas reuniões da Câmara era o Bira, um baixinho irritadiço que tinha um parafuso a menos, assim como “Ana Doida”, mas que, ao contrário da anciã, era dado a falatórios em praça pública, sentindo-se o décimo vereador daquela casa, chegando ao extremo de interromper os verdadeiros vereadores, como da vez em que, ao discordar da fala anasalada do vereador Aroldo, disparou, cheio de si: “Pela orde, excrecência!”.

Naquela manhã o presidente da Câmara resolvera discutir o autismo, já que alguns moradores do município padeciam daquela característica. Entre as ideias estava, claro, a criação do “Dia Municipal do Austista”.

Aquele assunto, assim que foi mencionado da tribuna, tirou Bira do sério. Falava-se em valorizar os austistas. Na primeira brecha, ele emendou, lá do meio da respeitável plateia: “Abaixo esse povo alto! Precisamos discutir o baixismo nesta casa, incelença”, disparou.


 


“Ana Doida”, fez que sim com a cabeça, concordando com aquele pitaco embasado.

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