Duas moedas do mesmo lado

Mara Narciso - Médica e jornalista
24/12/2019 às 08:18.
Atualizado em 05/09/2021 às 23:07

“Você pode até ser médica, mas não acredito não”. Assim me falou o pai de uma moça acabada de ser internada na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, hoje, uma casa de saúde de 120 anos (1899). Foi na 3ª Clínica Médica de Mulheres, com seis leitos, no sexto andar, ala B, cujo chefe era Dr. Hermann Alexandre Vivacqua Von Tiesenhausen. Três hospitais formavam o grupo: Santa Casa de Misericórdia, Hospital São Lucas e Sanatório Imaculada Conceição.  Eu tinha me formado em Medicina um mês antes e iniciava a Residência de Clínica Médica. Nada aconteceu de anormal e fui tratada daquele jeito. A paciente tinha sido medicada no Serviço de Urgências Clínicas e Cirúrgicas (SUCC) do hospital, e não estava grave. Verde, ainda hesitante, por melhor que tenha sido o curso e ter me saído bem nas provas de residência, eu tremi e senti o rosto esquentar. Esse tipo de obstáculo exige controle e segurança, coisas que eu não tinha. Não deixei transparecer esse mal-estar. Calei-me, conferi a medicação, pedi exames, e nunca me esqueci.

“Uma amiga me disse que aqui seria o lugar certo para vencer meus medos. Foi bom te conhecer e te ouvir. Saio reconfortada. Vim e confirmei o que a pessoa me falou: ‘ela é jornalista e não se parece nada com uma médica. Você vai gostar’, e eu gostei”. Assim se despediu de mim uma cliente assustada com um nódulo na região do pescoço.

Quarenta anos separam os dois episódios. Em ambos eu não me parecia com uma médica; no primeiro caso por ser novata, e, possa ter demonstrado indecisão, e no segundo, por não estar de branco e falar diferente dos demais médicos. É claro que minha maneira de lidar com o mundo, vinda da experiência de vida e do próprio consultório causa isso, contando meus 19,5 anos de psicanálise em três épocas.

O tempo e a circunstância são tão díspares, que asseguro serem duas pessoas ligadas pela mesma profissão e ao mesmo retrato de não parecer médica. Em janeiro de 1980 foi um insulto e, em dezembro de 2019, um elogio. Nos dois momentos, o melhor foi não incorporar a afronta, para não estragar a carreira, adicionando insegurança, nem navegar na consideração, para não reduzir o humanismo, o respeito e a empatia que devem reger todos os atos médicos.

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