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Terça-Feira,30 de Abril

Devoção cantada aos guerreiros

Índios Xakriabá fazem a Cerimônia dos Mártires para celebrar aqueles que lutaram pelos direitos da etnia

Manoel Freitas - Enviado Especial
22/02/2019 às 07:48.
Atualizado em 05/09/2021 às 16:40

(MANOEL FREITAS)

SÃO JOÃO DAS MISSÕES – Um dos rituais mais emocionantes entre as nações indígenas do país, a Cerimônia dos Mártires, na Aldeia Itapicuru, no extremo Norte de Minas, celebrou, no último dia 12, 32 anos da Chacina Xakriabá. E pela primeira vez, o momento de reverência e homenagens foi registrado por um veículo de imprensa norte-mineiro.

O crime brutal ocorrido em 1987 culminou com a demarcação do território de aproximadamente 54 mil hectares desse que é o maior grupo étnico de Minas Gerais.

No episódio foram cruelmente assassinados a liderança Rosalino Gomes, o cunhado dele Manoel Fiúza e José Santana. Naquela madrugada, na então Aldeia Sapé, os filhos de Rosalino Gomes, José Nunes, hoje prefeito de São João das Missões pela terceira vez, e o irmão, o cacique Domingos Xakriabá, com 11 e 10 anos, respectivamente, assistiram o corpo do pai ser arrastado pelo bando de 15 pistoleiros.

A barbárie, encomendada por fazendeiros, um grupo de grileiros da terra, elevava para nove o número de índios mortos naquele período, sob a liderança de Francisco de Assis Amaro. O crime marcou quase três décadas de lutas entre os índios e posseiros, tendo como alvo principal o vice-cacique Rosalino Gomes, com 42 anos de idade. Ele exercia forte liderança na tribo, que mantinha a forte disposição de não abrir mão de suas terras.

O episódio foi resultado de um processo sofrido deste povo para reaver seu território, onde várias outras lideranças tombaram. Em face à crueldade, pela primeira vez na história do Brasil foram condenados à prisão todos os acusados pelo crime de genocídio.

O julgamento dos acusados, aguardado com grande expectativa pela imprensa mundial e sob pressão de entidades e lideranças indígenas de todo o país, foi realizado pela Justiça Federal em Belo Horizonte, em setembro de 1988.

Os matadores foram condenados a 81 anos de prisão. A mãe da liderança, Anísia Nunes, que acompanhou esse ano a Cerimônia dos Mártires, na época grávida de dois meses, foi ferida com um tiro no braço. A partir daquele instante, nas 34 aldeias, morria a voz do vice-cacique, e nascia um grito.
 
RITUAL
O dia 12 de fevereiro deste ano amanheceu com toda a preparação para o ritual, que começou na casa da liderança da Aldeia Itapicuru. Ao som de cânticos, iniciaram a marcha de dois quilômetros até o cemitério erguido ao lado da casa que estava sendo construída pelo vice-cacique Rosalino antes de sua morte. Até hoje está conservada a estrutura de madeira.

O campo santo é protegido por cercas para manter viva na memória dos povos indígenas a chacina. Os rituais são realizados no entorno, com adornos preparados durante vários dias, sobretudo por mulheres e crianças, de modo que a barbárie seja uma lição passada como ato de heroísmo de pai para filho.

O ritual, em movimentos compassados, segue sob sol escaldante. Antes da concentração e oração ao lado dos túmulos e da residência, crianças, jovens e adultos, em sua maior parte pintados e usando artesanatos, em fila entram na mata, ao som de “eu sou Xakribá, na mata eu sei andar”.

Novos caminhos e descobertas
O cacique e também professor Domingos Nunes conta que, após a chacina, o povo Xakriabá se aproximou de outras etnias de Minas, da Bahia, quilombolas, tupiniquins. “Isso deu uma guinada na nossa cultura, porque as pessoas tinham medo, eram discriminadas, não tinham a liberdade de aparecer na cidade com a pintura e tudo. Tinham que ir disfarçados, se falasse que era indígena então...”, lembra.

Com 68 anos de idade e 13 filhos, “vivos só 8”, a índia Otília Ferreira de Araújo, da Aldeia Itapicuru, acompanhou na casa do parente Zé Fiúza o ritual de pintura corporal e dos mantimentos para os convidados.

“Além de ajudar em todas as atividades, eu benzo desde que era nova. Benzo de tudo quanto é coisa e rezo, sou rezadora”, conta. Ela recorda que “na época que começou a luta, fomos trabalhar no Morro Faiado, aí fomos para o Sapé, onde fiquei toda a vida, enquanto a guerra esquentava”. Otília lembra que no dia da morte de Manoel Fiúza, ele chegou na casa dela à tarde e falou: “vou ali porque vou morrer”.

Ela disse que o aconselhou a não sair, porque já estava ameaçado. Mas não adiantou.

Dona Otília Ferreira de Araújo falou a O NORTE ao lado do sobrinho Edvan Pereira Neves da Silva, de 21 anos, o Srêwakmõwê Xakriabá. “Orgulho para toda a tribo, porque, além de preservar nossas tradições desde menino, ingressou na UFMG em 2017, onde faz Ciências Sociais e Humanidades, um curso específico”.

Renascimento da aldeia após a dor da chacina
A cerimônia, pela importância para outras etnias e comunidades tradicionais, principalmente do Norte e Vale do Jequitinhonha, é acompanhada ao longo de três décadas por geraizeiros, quilombolas, catingueiros, vazanteiros, veredeiros e apanhadores de flores.

Na jornada a pé, na mata entrelaçada e na estrutura de madeira, os cantos e rezas enaltecem o respeito aos mais velhos e a importância dos rios e da preservação das nascentes.

Um dia antes da cerimônia, O NORTE ouviu a liderança da Aldeia Itapirucu. Zé Fiúza, que após o tiroteio tentou socorrer o irmão, Manoel Fiúza, que morreu em seus braços, lembra, em tom emotivo, que infelizmente a história de seu povo foi escrita com sangue.

“Ninguém desejava que eles morressem, de maneira nenhuma, mas para nós, o Rosalino foi o maior guerreiro, como se fosse uma árvore que cortaram, da qual brotaram muitos bons frutos”, afirma.

Zé Fiúza revela que os índios usavam escondidos o artesanato e a pintura corporal para não serem perseguidos. “Daí a gente começou a reviver, porque da maneira que estava indo, nosso povo estava acabando, porque índio vive é de cultura e os jovens têm que ser o nosso amanhã”.

Com os olhos cheios de lágrimas, o cacique Domingos Nunes lembra a cena de seu pai sendo arrastado pelos pistoleiros. “Hoje a gente não tem mais aquele sentimento de dor, porque ele mesmo falava que não ia conseguir e preparava a gente. Mas com sua morte, deixou a terra livre para o povo”.

O cacique assumiu a liderança das 34 aldeias aos 27 anos. “A partir da chacina, ganhamos o território, começamos a nos organizar, porque até então os indígenas não tinham território, Viviam debaixo dos pés dos fazendeiros, trabalhando como agregados”.

(MANOEL FREITAS)

(MANOEL FREITAS)

(MANOEL FREITAS)

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(MANOEL FREITAS)

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