Lembranças de violência marcam o Dia internacional da Mulher

Jornal O Norte
08/03/2006 às 10:55.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:30

Jerúsia Arruda


Repórter


jerusia@onorte.net

Hoje é o Dia internacional da Mulher. A data que foi consagrada pela ONU em 1945, está intimamente ligada aos movimentos feministas que buscavam mais dignidade para as mulheres e uma sociedade mais justa e igualitária. É a partir da Revolução Industrial, em 1789, que estas reivindicações tomam maior vulto com a exigência de melhores condições de trabalho, acesso à cultura e igualdade entre os sexos. As operárias desta época eram submetidas a um sistema desumano de trabalho, com jornada de 16 horas diárias, espancamentos e ameaças sexuais.

Dentro desse contexto, 129 operárias da fábrica de tecidos Cotton, de Nova Iorque, organizaram a primeira greve da história conduzida unicamente por mulheres. Sua principal reivindicação: a redução da jornada de trabalho para 10 horas. E partiram para a luta, sendo duramente reprimidas pela cavalaria da polícia.

Para se proteger, fugiram para dentro da fábrica. Os portões foram trancados por fora e a polícia ateou fogo no prédio por determinação dos patrões causando a morte de todas elas, carbonizadas ou por asfixia. Era 8 de março de 1857.

Em 1910, durante a II Conferência internacional de mulheres, realizada na Dinamarca, foi proposto que o dia 8 de março fosse declarado Dia internacional da Mulher em homenagem às operárias de Nova Iorque.

Em 1975 a Assembléia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) decretou o dia 8 de março como dia internacional da Mulher.

MARLENE XAVIER NA LUTA POR JUSTIÇA

Em todo o mundo, as mulheres são lembradas, neste dia, de forma especial, porém, a maior parte das comemorações não interferem, de fato, na dura realidade dessas mulheres.

Milhares de casos poderiam ser contados para retratar essa realidade, como a história da professora Marlene Xavier. Apesar de não ter, ela mesma, sofrido agressão física, Marlene representa a luta pela justiça, assim como milhares de mães de todo o país, que perderam seus filhos, vítimas da violência impune.

Marlene diz que o ideal primeiro de sua vida foi ser dona de casa: casar, ter filhos e uma vida tranqüila. Mas, segundo ela, na prática isso não funcionou,  a vida não permitiu, porque nunca foi uma pessoa conformista e sempre buscou o crescimento e a promoção de valores e para isso foi preciso arregaçar as mangas e ir à luta.

Mãe de cinco filhos, formada em magistério, em 1981 Marlene ingressou na docência onde atua até hoje. Trabalhando no ensino fundamental, diz que exercitou a paciência e fortaleceu os laços com seus filhos graças ao aprendizado com o convívio diário com as crianças, cada uma com suas potencialidades, carências, talentos e limitações. Dizendo ser uma pessoa prática e até meio perfeccionista, Marlene se dedicou em formar seus filhos e prepará-los para a enfrentar a vida.

RUPTURA

Depois de muita batalha, já com os cinco filhos adultos, Marlene foi duramente provada pelo destino, quando seu segundo filho, o bailarino e ator Igor Xavier foi assassinado, em 2002.

- É impossível descrever o que senti. Até porque foi um choque ver uma pessoa tão forte e sadia de corpo e espírito ter sua vida interrompida de forma tão brusca. Até hoje sou incapaz de aprofundar nos detalhes do que aconteceu. Por várias vezes tentei ler o processo e nunca consegui passar da primeira página porque me dói muito saber – diz.

Emocionada, Marlene conta que no dia da sua morte trágica, Igor, depois do trabalho no estúdio de ballet Jaqueline Pereira, foi até o Centro Cultural onde conversou com o poeta Aroldo Pereira, seguindo para o bar do Durães, onde sempre se reunia com amigos.

- Sabendo como meu filho era, de sua simplicidade e da fé que tinha nas pessoas, seja lá qual for o motivo que o levou a acompanhar aquele indivíduo, ele jamais pensou que esse seria seu último ato na vida. Meu filho foi pego, enganado e atraído para uma armadilha covarde e traiçoeira – desabafa Marlene, se referindo ao acusado do assassinato de Igor Xavier, Ricardo Ataíde, que, segundo testemunhas, saiu com ele do bar do Durães na noite de 1º de março de 2002.

Igor só reapareceu no dia seguinte, morto. Ricardo Athayde e seu filho, Diego Athayde foram indiciados pelo crime e aguardam julgamento em liberdade.

Marlene diz que, graças aos poderes financeiros e políticos representados pela família dos acusados, o julgamento vem se arrastando lentamente, adiando que a justiça se cumpra.

RESSURREIÇÃO

Depois de passar pela tormenta que a morte de um filho representa para uma mãe, principalmente da forma como aconteceu, Marlene diz que por um bom tempo tudo o que sentia era revolta e desejo de vingança, vontade de morrer.

A partir das manifestações dos amigos e familiares, que foram às ruas clamar por justiça, das muitas homenagens que foram rendidas à memória de Igor, às quais era convocada a comparecer, Marlene diz que foi como que puxada do poço em que se encontrava, mas nada que a animasse, porque em sua cabeça ficou gravada a última imagem de seu filho.

Com muita oração, Marlene pedia todos os dias pela morte, até que seus outros filhos começaram a cobrar sua atenção.

- Meus filhos me disseram saber o quanto Igor era importante para mim e que entendiam meu sofrimento, mas se me acontecesse alguma coisa eles iriam sofrer ainda mais. E como um milagre, em sonhos, pude ver meu filho, vivo, sendo cuidado, tratado, ainda convalescente. Ao acordar tive vontade de sair nas ruas gritando que meu filho estava vivo. Desde então foram muitos os sonhos e a partir deles foi deflagrado dentro de mim o desejo de luta por justiça. Não só por Igor, que foi o ícone disso tudo. Minha luta é por todos que foram injustiçados, que sofrem o mesmo tipo de preconceito - Igor era homossexual - e queremos unir as famílias que vivem o mesmo tipo de situação, criar talvez uma associação.

DE AMOR E SONHOS

Além das manifestações por justiça, Marlene decidiu escrever um livro onde conta a história de Igor Xavier e toda luta que vem enfrentado desde sua morte.

- Apesar de ter meu filho vivo em minha mente e em meu coração, a justiça tem que ser feita. É uma questão de direito, até para uma resposta à sociedade. Nenhum crime pode ficar impune. Não é só por Igor que peço, mas por todos os outros, cujos assassinos ainda estão por serem julgados. No livro De amor e sonhos, conto a vida física de meu filho; narro os sonhos que tive depois de sua morte e que me trouxeram de volta o desejo de viver; mensagens que pessoas maravilhosas me enviaram e que me ajudaram a entender melhor essa questão dos sonhos; envio uma mensagem aos pais de homossexuais e também clamo por justiça – explica Marlene, que diz que o dinheiro arrecadado com o livro será revertido no projeto de criação de uma fundação onde pretende desenvolver um trabalho voluntário junto à comunidade carente, com aulas e oficinas nos vários segmentos artísticos, com o objetivo de desenvolver a inclusão social e o resgate da cidadania.

Com apoio de toda a classe artística de Montes Claros, recebendo, inclusive, de um grupo de músicos e compositores a promessa de uma coletânea, para que possa beneficiar o seu projeto essa aquariana de 59 anos, com muita disposição e fé promove de 09 a 16 de março a II Semana Cultural em homenagem a Igor Xavier e também para clamar por justiça, alvo maior de sua luta.

Na programação, estão incluídas apresentações artísticas, inauguração de uma praça no bairro Morada do Parque, que leva o nome do bailarino, sessão solene na câmara de vereadores para discutir sobre justiça e impunidade e lançamento do livro de Amor e sonhos, de sua autoria.

FUNDAÇÃO IGOR XAVIER

O próximo desafio de Marlene é consolidar o projeto da Fundação Igor Xavier, percorrendo todos os trâmites burocráticos para que seja constituída legalmente e montada a sede, uma casa, onde jovens e adolescentes serão recebidos e amparados.

- Nosso maior sonho é proporcionar aos jovens um espaço onde possam se desenvolver, além da possibilidade de aprender uma profissão, criando uma oportunidade de trabalho, sempre através da arte. Fico muito agradecida a Deus por me devolver coragem de lutar. É muito gratificante poder dar a mão a um necessitado, promover uma pessoa que está precisando de um apoio, resgatar um cidadão. Não tem coisa melhor na vida do que poder fazer isso. Eu não posso fazer tudo, mas vou fazer o que for possível. Várias pessoas chegam pra mim e perguntam se não me canso, que isso não vai ressuscitar meu filho e lhes respondo que ele já está ressuscitado na minha mente e no meu coração, e que se isso não tivesse acontecido eu estaria morta, acabada. E quem cala consente. Tudo que quero é que a justiça seja feita.

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