Em entrevista a O Norte Carlos Maia e Charles Boavista falam de show especial, de raízes e da discriminação com o artista da terra

Jornal O Norte
19/04/2006 às 12:52.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:33

Jerúsia Arruda


Repórter


jerusia@onorte.net

No próximo sábado 22, a dupla de músicos e compositores Carlos Maia e Charles Boavista faz show na cidade de Francisco Sá. Esta poderia ser apenas mais uma apresentação, como outra qualquer, se a cidade não fosse o berço do cantor Charles Boavista que, apesar de montes-clarense, embalou seus sonhos pueris na fazenda Boa Vista, zona rural do Brejo, na casa de parentes e amigos.

A fazenda, o cenário de Brejo das Almas, por terem sido tão marcantes na construção de sua história pessoal e profissional, foi alento para muitas das canções de Charles Boavista (cujo nome artístico nos remete àquela terra que ele adotou como sua, apesar de ter nascido Agnaldo Pereira), como Brejo das Almas, Se Eu Pudesse Voltar Pra Roça, Boavista, entre outras, além de servir de inspiração para o estilo que o transformou em um exímio representante da música regional norte-mineira, o levou a celebrizar a cultura montes-clarense em todos os cantos do país - afinal, não é possível falar em Montes Claros sem lembrar de... E mês que vem, eu vou de trem pra Montes Claros...




Carlos Maia Charles e Boavista: talentos que precisam


às vezes até brigar para ter chance de mostrar sua música


No show, a dupla rememora canções dos grupos Raízes e Agreste que marcaram época, músicas inéditas, composição dos dois, além de sucessos consagrados nas vozes de Caetano Veloso, Banda de Pau e Corda e Sá e Guarabira, todas ligadas à cultura regional.

Em um papo descontraído, mas com sentimentos aflorados, nossa reportagem conversou com a dupla que falou sobre as restrições do mercado para a música regional, da falta de políticas públicas municipais na área da Cultura, do tipo de profissional que vem atuando na música em Montes Claros atualmente, nas possíveis soluções para resolver essas questões e dos projetos para o futuro.

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Charles, como é cantar para um público que representa a base de sua história pessoal e profissional?

Charles: A emoção está mais em mim do que nas pessoas do lugar. A fazenda Boa Vista era muito grande, se dividiu e as pessoas que viviam lá se dispersaram. Então, a Boa Vista que conheci está em mim, em minha lembrança. Sei que muitos conhecem nossa música, mas a emoção talvez não seja a mesma. Será bom ficar de frente com o passado até para perceber o quanto também mudei.

Vocês estão juntos há pouco mais de um ano. Como tem sido o espaço de trabalho para a dupla?

Charles: Alguns anos atrás, com os grupos Raízes e Agreste, tanto Montes Claros quanto as cidades menores da região promoviam eventos cuja presença da música regional era imprescindível. Nessa época não faltava espaço, não só para trabalhar, mas também para formar platéia, pois as pessoas realmente apreciavam o estilo. Hoje as coisas estão diferentes. A distância dos grandes centros isola o município dificultando a inserção do artista local no mercado de trabalho, não existe uma política cultural com critérios que o favoreçam e nem apoio das rádios, que não têm espaço para nossa música. Somando tudo isso, resta apenas o esforço individual e contínuo, insistente mesmo, do artista para conseguir se manter. E não somos nenhuma exceção.

Maia: A indústria cultural provocou um processo de mudança na música – que é produzida para dar lucro - e, conseqüentemente, no gosto do público, que consome os produtos difundidos pela grande mídia. Então, não há muito interesse por parte dos promotores de evento em investir em trabalhos como o nosso. O que conseguimos é graças ao nosso esforço.

Mas vocês contam com a aceitação do público...

Maia: Claro, não podemos reclamar. Todos os lugares onde tocamos sempre lotam. É por causa desse público que insistimos em lutar por mais espaço para trabalhar.

Como é a participação de vocês nos eventos promovidos pela secretaria de Cultura?

Charles: Na mentalidade oficial todo artista da terra é iniciante. Outro dia vieram uns amigos de São Paulo que já conheciam nosso trabalho para tocar na festa do folclore, me viram na platéia e ficaram sem entender porque eu não estava na programação. Foi muito constrangedor. E quando a gente participa, recebe um tratamento diferente do artista que vem de fora, o cachê é sempre simbólico. Isso quando não é de graça.

Maia: Sabe, é aquela história de que o artista local se ensina a pescar. O de fora, recebe rede, anzol, isca e tudo mais. Ninguém quer saber o que já fizemos, não dá importância para história individual. Quando é daqui, qualquer coisa serve.




(fotos: Wilson Medeiros)

Muitos artistas de Montes Claros têm gravado CDs e promovido espetáculos financiados por empresas privadas ou por lei de incentivo à Cultura. Vocês já tentaram por esse caminho?

Charles: Para o artista se promover ou conseguir um patrocínio aqui, é preciso ter um figurão para dar aquele telefonema. É o que chamamos de ação entre amigos, cujo patrocínio é definido entre doses generosas de whisky, em festas bacanas. Tem muito benefício cultural que só é liberado para um grupo, normalmente cria do Conservatório. Aliás, o músico que nunca foi ao Conservatório não é considerado músico. Isso conduz à estagnação e nos prejudica o tempo todo. Além disso, tem a política partidária. Se o artista não fizer parte do grupo político da casa, fica de fora. É uma coisa provinciana.

Maia: Há algum tempo precisei da lei do Mecenato para fazer um projeto e foi a maior canseira para conseguir junto à secretaria de Cultura, que até desisti e fui buscar em outro lugar. Não temos nenhuma assessoria por parte dos agentes de Cultura e não há nenhum tipo de informação que possa facilitar o acesso a esses benefícios.

E os representantes dos músicos, como a Ordem dos músicos, sindicatos? Como têm atuado?

Charles: Nunca se conseguiu estabelecer um sindicato em Montes Claros e a Ordem dos músicos só se preocupa com documentar o músico, mas não defende a classe.

Maia: Não existe proteção contra pirataria, Ecad não repassa direitos autorais, lojas vendem discos e nós não ganhamos nada. Enfim, não temos representação.

Muitas pessoas que representam instituições e empresas que gerenciam esse mercado são ou foram artistas. O que vocês acham da postura que adotam em relação ao artista?

Charles: Um disparate. Paulo Narciso (diretor da Rádio 98 Fm) é catopé atuante, mas a música regional não faz parte da programação da rádio dele. Isso é preconceito. A rádio Terra chama Terra, mas não tem um horário para a música daqui. Nenhuma rádio comercial tem. A secretaria de Cultura é cheia de artistas, começando pelo secretário João Rodrigues, que é artista plástico, e se preocupa em promover eventos mas não perde tempo na promoção do artista que ela deveria representar. Tudo fica em vão. Quando participamos de algum evento municipal foi porque ficou tão evidente nosso esforço que ficou difícil de nos deixar de fora.

Maia: É certo que algumas pessoas nos apóiam, mas impressão que dá é que quem decide mesmo nos atura porque não pode nos evitar. E não se pode falar no assunto porque leva para o lado pessoal e cria novas amarras.

Como o espaço de trabalho poderia ser ampliado?

Charles: É preciso haver uma conscientização, tanto do artista, quanto dos produtores de eventos e da administração, para que a coisa possa fluir. Os artistas baianos se organizaram e música de lá ganhou projeção no mundo inteiro. A música do Vale do Jequitinhonha se firmou de um jeito que, em todo lugar que você vai, tem sempre alguém tocando, seja em bares, nas rádios, em qualquer lugar. Mas o Norte de Minas ainda não aconteceu de fato. Tem fama, mas o artista não consegue se manter se não trabalhar também em outro ramo. Na noite, está todo mundo cantando a música do Vale. Aqui, raramente você vê um artista da terra tocando a música de um conterrâneo. Parece complexo de inferioridade. Outro dia uma dupla sertaneja gravou uma música minha e não colocou os créditos.

Maia: As coisas aqui não têm seqüência. Assim como Diamantina, Montes Claros tinha a fama de cidade seresteira, inclusive com grandes artistas cujas músicas são sucesso até hoje. Mas, ao contrário de Diamantina, os seresteiros daqui não se organizaram e sobrou muito pouco. Já houve teatro forte, festivais de expressão nacional, grupos musicais que deixaram fortes influências e fizeram história. Mas a nova geração não acompanhou. Não existem mais lideranças artísticas. É preciso rever velhos conceitos. O músico precisa se profissionalizar e a administração pública cumprir seu papel.

Qual seria a participação do artista nesse processo?

Charles: Não há espaço para rebeldia. É preciso uma postura séria e comprometida com a própria causa. Os músicos e compositores são os maiores prejudicados e por isso precisam buscar uma parceria com promotores de eventos, lojas de disco, emissoras de rádio e TV para que se possa criar um novo mercado, como foi feito na Bahia e que deu tão certo. Ás vezes é uma luta inglória, precisamos nos submeter a um série de exigências, mas não podemos é ficar parados, esperando.

Particularmente, o que pretendem fazer para continuar conduzindo o trabalho da dupla que vem dando tão certo?

Charles: Não temos rabo preso e por isso não temos medo de tornar públicas nossas inquietações.  Estou no mercado de trabalho há 40 anos e participei ativamente da cultura do município todo esse tempo e por isso conheço bem sua história. Continuo disposto a lutar para ver essa a cidade se tornar realmente da arte e da cultura, como se tornou lendária.

Maia: Ainda nesse ano pretendemos gravar um DVD e viajar pelas Minas Gerais para divulgar nossa música – a música de Montes Claros –, e ganhar novos mercados. Quem sabe, depois disso possamos ser recebidos com a mesma pompa e circunstância dispensada aos artistas dessas cidades que tão bem nos recebem, quando em seus palcos.

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