
A série de matérias étnicas que O NORTE faz, desde 2018, é fruto de exatos 19 anos de trabalho de seu fotógrafo Manoel Freitas na Terra Indígena Xakriabá, que teve início com a cobertura da morte do ex-cacique Manoel Gomes de Oliveira, em 2003. Nesse tempo, além da construção de uma Casa de Cultura, três casas de artesanatos, bem como mais de 40 escolas através do Programa de Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais, pôde acompanhar sua chegada ao centro do poder: há cinco mandatos consecutivos ocupam a chefia do Executivo de São João das Missões, bem como são maioria no Legislativo municipal.
E nem poderia ser diferente. Mesmo com a Terra Indígena Xakriabá sendo homologada pela Funai somente em 1987, dez anos mais tarde já ocorria à emancipação de São João das Missões, quando o Povo Xakriabá passou a representar aproximadamente 70% de sua população. Aliás, o então cacique, nos oito primeiros anos após o processo de emancipação, foi eleito e reeleito vice-prefeito do município recém-criado.
Desse modo, localizada no Alto Médio São Francisco, a 256 km de Montes Claros, como maior nação indígena de Minas, o Povo Xakriabá trabalha em várias direções para salvaguardar tradições e ampliar sua participação na política, como, por exemplo, na eleição em 2022 de Célia Xakriabá, a primeira indígena de Minas Gerais a garantir assento na Câmara dos Deputados.
Há duas semanas, enfocamos o artesanato, em especial a cerâmica. Desta feita, voltamos nosso olhar para a pintura corporal e desenhos de muita simbologia elaborados por indígenas em suas 37 aldeias, sem deixar de lembrar que, segundo historiadores, em 1.698 o indígena Estevão Oliveira, conhecido como “Trinca de Ferro”, já fazia história nas artes. É que ele, o último remanescente a falar fluentemente o idioma nativo, cunhou naquele tempo a imagem de São João dos Índios, designação que passou a ter até sua elevação à categoria de distrito de Itacarambi, sob a denominação de São João das Missões.
Soma-se às cores e formas dos desenhos e das pinturas corporais, os adornos que contribuem para sua identidade cultural, imprescindíveis nos rituais. Isso, com destaque às danças circulares, praticadas há séculos, simbolizando sua unidade e totalidade. Por sinal, nas aldeias, hoje mais do que nunca, é cada vez maior o número de crianças e jovens que participam desses ritos, nos quais a música e a dança têm igualmente enorme significado.
Identidade cultural: os desenhos falam
A escolha dos recursos naturais, como árvores, frutos, flores, sementes e óleos no preparo das tintas, variam de uma etnia para outra. Contudo, têm em comum o fato de serem importantes para a história de cada povo, porque os indígenas carregam na própria pele essa identidade cultural com enorme apelo ancestral. Em relação ao Povo Xakriabá, a pintura corporal, bem como desenhos e outras manifestações artísticas, é de uma riqueza e diversidade tamanhas que difere muito de uma aldeia para outra ao longo dos 54 mil hectares de seu território.
Para se ter uma idéia, há mais de três décadas o Pajé Vicente, da Aldeia Caatinguinha, realiza importante trabalho dentro da Terra indígena Xakriabá, não apenas produzindo artesanato e pintura corporal, como estimulando seu uso nas diversas aldeias, dando contornos artísticos às cerimônias, ou seja, avivando ainda mais seus costumes e tradições.
Normalmente, no preparo da tinta, o Povo Xakriabá usa o jenipapo. Uma vez que seu sumo é extraído, para dar tonalidade mais escura às pinturas, é misturado ao pó de carvão, que permanece no corpo por aproximadamente 15 dias. Os corpos também são pintados com tinturas extraídas do urucum, que produz o vermelho. Já as peças de artesanato, como colares e pulseiras, que dão mais valor ainda à pintura corporal, em grande parte são produzidas com a madeira do Itapicuru, árvore muito comum no semi-árido norte-mineiro, apreciada por ser de cor muito viva, o roxo, que permite com mais facilidade o entalhamento.
De tal forma que, além de tintas e outras matérias-primas encontradas no Cerrado, basta um olhar mais atento pelas aldeias para perceber que os traços que bem retratam sua identidade cultural ornamentam escolas, prédios públicos e mesmo habitações, elaborados de forma abstrata, geométrica e mesmo reproduzindo figuras indígenas. Em muitos casos, fazem o uso da tabatinga, argila mole e de colorações diversas. Algumas dessas pinturas e desenhos contam histórias, têm sua linguagem própria, transmitem seus recados, outras simplesmente refletem o talento de quem as produziram. (MF)
As tintas pintam o corpo e a alma
Para falar acerca da importância da pintura e das artes na cultura da maior etnia do Estado, O NORTE conversou com o professor Edvan Srêwakmõwê Xakriabá. Com formação em Ciências Sociais e Humanidade na Universidade Federal de Minas Gerais, é casado com Janaíne Nunes, que em 2019 concluiu, também na UFMG, o Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas, na área de “Ciências da Vida e da Natureza”.
Ele é uma das lideranças jovens da Aldeia Itapicuru, na qual há 35 anos é celebrada no mês de fevereiro a Cerimônia dos Mártires, em homenagem aos indígenas chacinados em 1987, data a partir da qual ocorreu a demarcação do seu território. Explicou que “quando uso o cocar, pulseiras, colares, borduna, e, principalmente a pintura corporal, seja ela de urucum ou jenipapo, a sensação é de que fortalece o espírito de guerreiro que mora em cada um de nós”.
Continuando, Edvan Srêwakmõwê argumentou que “eu costumo dizer que sem o cocar, sem a minha pintura e sem os adereços, não sou eu, então concordo com a Célia Xakriabá, para a qual, quando a gente pinta o corpo, pinta também a alma”. Lembrou que, do mesmo modo, se sente protegido com a pintura corporal, “e essa sensação tenho, sobretudo, quando volto de um ritual, com a mente fortalecida, a alma mais limpa”. Por fim, observou que toda indumentária que faz uso deixa à vista em casa, “porque se não estiver usando, tenho que estar olhando no espaço que posso ver a todo o momento”.







