variedades

Pela estrada a fora…

A partir da narrativa poética de registros fotográficos, reportagem revela a tradição que faz o tempo caminhar lento no Jequitinhonha

Manoel Freitas
Publicado em 31/03/2023 às 20:30.
Quatorze primos-irmãos fazem longas caminhadas no Jequitinhonha (Manoel Freitas)

Quatorze primos-irmãos fazem longas caminhadas no Jequitinhonha (Manoel Freitas)

O Vale do Jequitinhonha, de cultura riquíssima, é o mais genuíno retrato da mineiridade. Permite à sua gente reviver o passado e contemplar belezas naturais pouco tocadas, transmitindo de uma geração à outra saberes tão valiosos como o ouro que no final do século XVII promoveu ao longo de suas montanhas a formação de uma rede de aglomerados urbanos. Então, na antiga rota para os colonizadores portugueses que extraiam pedras preciosas, permaneceu um povo ordeiro, de simplicidade infinita e notável sabedoria popular, em cujo cerne habita elementos africanos, indígenas e europeus. 

E motor de arranque dessa narrativa são as imagens de dois irmãos casados com duas irmãs, que até pouco tempo moravam numa mesma casa e que há mais de uma década cobrem percurso de 15 quilômetros com seus filhos, entre Botumirim e a comunidade de Córrego Fundo, parede e meia com o povoado de Bonito e o distrito de Piedade, município Cristália. Na verdade, ao caminharem pelas montanhas, ficam em comunhão com a natureza e mantêm viva tradição secular de percorrer longas distâncias por carreiros e trilhas que serviram ao garimpo, mesmo com bagagem e crianças de colo.  
 
COSTUMES RESISTEM
Mineiro que se presa aprecia comida quentinha saindo do fogão a lenha, que exala vapores aromáticos, um ingrediente a mais para impregnar no assado, proporcionando sabor levemente defumado. Mas esse ritual começa na escolha da madeira, na feitura do feixe, sua amarração e posterior transporte na cabeça. No passado com forte cheiro de presente, o hábito, principalmente no Vale do Jequitinhonha, além de tradição, era importante renda para a população, posto que a venda de seu excedente contribuía para o custeio de outras despesas.

O costume, que denota os saberes e a resistência do povo do Jequitinhonha, foi igualmente retratado pela reportagem. Histórias de um tempo que poeticamente permanece vivo na memória, onde os moradores se encontravam nas matas “para catar lenha, cantar e contar causos”, no dizer da botumiriense Dona Zenália.

Sob a ótica da ciência, para gerar o conteúdo contamos com os conhecimentos e a sensibilidade de outro filho do Jequitinhonha, José Claudionor dos Santos Pinto, natural de Itinga. Além de professor, graduado e pós graduando em Filosofia, é quilombola, poeta, escritor, desenhista e radialista. Conhecido como Jô Pinto, o mestre resume: “o povo do Vale é uma brava gente, que desde sempre lutou pela sobrevivência, respeitando seu território e tudo que ele tem, seja nos aspectos sociais, educacionais, ambientais e culturais”.

Dois irmãos, duas irmãs, uma história
Cobrir longas caminhadas em família, no Vale do Jequitinhonha, são práticas que se mantém vivas graças ao legado de outras gerações. O NORTE, por duas vezes, registrou imagens de parte da jornada de dois irmãos que são casados com duas irmãs, que cobrem com frequência os 15 km que separaram a sede de Botumirim à comunidade de Córrego Fundo, divisa com Piedade, distrito do município de Cristália. 

Na verdade, cada um dos casais tem sete filhos, que são chamados de primos-irmãos, embora essa não seja uma nomenclatura oficial, mas uma tradição da língua portuguesa. Têm mais afinidade ainda porque, até pouco tempo, todos os também chamados duplos-primos viviam na mesma casa: Elizabeth, casada com Adão Rodrigues; e Natalina Bispo, casada com José Hilton Batista.

Sobre as tradições do povo do Jequitinhonha, O NORTE ouviu o professor José Claudionor dos Santos Pinto, pós graduando em Ensino de Filosofia e diretor do Centro Cultural Escrava Feliciana, em Itinga, sua terra natal, no vale do Jequitinhonha. “Para falar do povo do Jequitinhonha, é preciso conhecer a formação do seu território pelos povos originários, colonizadores e o povo negro escravizado”, explicou o também poeta.

Nesse sentido, observou que “essas longas caminhadas foram herdadas da convivência com os povos originários, de forma que o território para o povo do Vale do Jequitinhonha vai além da terra, é um espaço de convivência, sobrevivência, ancestralidade e espiritualidade”. Segundo o professor, “andar por esse território significa conhecer tudo o que nele tem e no qual é repassado de geração a geração”.

Feixe de lenha na cabeça, comida no fogão
Rodilhas de pano cuidadosamente feitas em formato de círculo para atenuar o peso dos feixes de lenha. Desde sempre, esse é o primeiro passo para ir a campo e trazer feixe de lenhas na cabeça. Escolhida a madeira, fardo pequeno para os mais jovens e pesado para os adultos. Família descendo e subindo a ladeira para preparar comida caseira quentinha no fogão a lenha, fogão caipira, fogão tropeiro. No Jequitinhonha, graças à tradição, ainda é assim. 

O NORTE, com a imagem de mãe e filhos levando feixes de lenha na cabeça, foi recebido em Botumirim pela avó de Mônica, Genilton, Gabriele e Rayane, Dona Zenália, que também integrava o grupo liderado pela filha Maria Helena Pereira Dias, “mas consegui fugir da fotografia (risos)”. Revelou que “além da tradição, todos nós pegávamos lenha até mesmo para comprar mantimentos, a situação era difícil, aqui melhorou de pouco tempo para cá, mas todo mundo que tem mais de 60 anos já passou muita necessidade”. 

Dona Zenália, com oito filhos, “graças a Deus todos vivos e com saúde”, lembrou ter herdado a tradição da mãe, Ana Medeiros de Souza. Segundo a matriarca, “se a madeira for boa, um moizinho só dá para fazer almoço, jantar e o almoço do outro dia, sem contar que a comida feita no fogão a lenha tem mais sabor. “Se você cozinha feijão, por exemplo, vai ver a diferença, muito mais gostoso, cozinha à vontade, não cozinha à força”.

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