Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que o Brasil tem 17,3 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, o que corresponde a 8,4% da população. Para exemplificar o dia a dia de lutas, superação e muito sentimento de parte desse grande universo de pessoas com deficiências (PcD), O NORTE ouviu duas mães verdadeiramente especiais em Botumirim, pacata cidade de 5.790 habitantes, distante 179 km de Montes Claros.
Duas mães porque, sabidamente, o cuidado sobre essa população quase sempre recai sobre elas. Duas histórias e uma chave-mestra, o amor, porque amor de mãe não se mede, posto que ajustar-se ao fato de ter filhos deficientes é um longo processo, dada a natureza afetuosa dessas crianças.
Uma vida de cuidados especiais, porque vai muito além do que assegurar as necessidades básicas. Basta lembrar que as PcD retratados pela reportagem não conseguem beber, comer e tomar banho sem ajuda dos familiares.
Em relação à mãe Maria Moreira, o caminho entre a casa e a escola, por si só, ilustra o grau de dificuldade em relação ao transporte. Quando trocou a roça pelo centro urbano, primeiramente levava os filhos nos braços. Muito tempo depois, os conduzia em carrinho de mão. “Hoje, graças ao bom e misericordioso Deus, consigo leva-los andando, com as mãos entrelaçadas”.
JOÃO LUCAS DE JESUS
Na sexta-feira (29), O NORTE encontrou um personagem muito especial jogando no gol, em pelada disputada na rua, com trave de pedaços de tijolos. A despeito das dificuldades inerentes a uma pessoa com limitações, demonstrava enorme habilidade, defendendo o gol com o peito e a cabeça, de modo emocionante.
A façanha é do risonho João Lucas Dias de Jesus, de 15 anos, para o qual não há segredo em definir o mundo: “uma bola, bola de futebol, porque são redondas e trazem emoção”. Tanto é verdade que, tão logo escuta o barulho dos vizinhos e observa o vai e vem da garotada com a bola, rapidinho já está no gol. “É a posição que gosto, né”.
Já sua mãe Letícia Dias, que o trata como “Neném”, depois de uma gargalhada, definiu o flamenguista “que desde sempre se virou sozinho”, como “tão alegre e brincalhão que atenta mais que trinta meninos”. Quando chega da escola, onde aprecia mais o português, tem duas opções: procura uma bola ou corre para telinha do celular, onde tem preferência pelo Free Fire, jogo eletrônico de ação-aventura.
João Lucas estuda na Escola Estadual São Francisco de Assis. De sua casa até à sala de aula, são quase 25 minutos de cadeira de rodas, só subida. O cuidado de conduzi-lo é de responsabilidade das irmãs gêmeas, as caçulas Fernanda e Flávia. A mãe Letícia tem ainda um filho, o André, trabalhador rural que mora em assentamento próximo à sede de Botumirim.
Daniel e Daniela, minhas eternas crianças
Na cozinha mesmo, enquanto preparava o almoço, com a voz embargada Maria Moreira conversou com O NORTE na sexta-feira (29). E nem poderia ser diferente, porque é preciso muita emoção para relembrar a caminhada: desde muito cedo, se desdobra, se multiplica para cuidar de dez filhos, dois dos quais PcD, Daniel, que completa 19 anos em quatro de fevereiro, e Daniela, que celebrou 18 anos no Dia de Natal.
Então, além dos dois filhos de Maria que têm a mesma idade, aos quais se refere como “minhas eternas crianças”, permanecem em Botumirim apenas Alice e Marilene. Uma família grande. Jackson, Lucilene, Maria Gislene e Jovelino residem em Brasília (DF). Aldionor mora em Limeira (SP) e Josilene em Botucatu (SP).
“Queria ter pelo menos mais dois, porque a gente tem sempre a sensação de que faltaram mais filhos, a família poderia ser maior”, opina a matriarca.
“Com todo sofrimento e dificuldade que já passei, e que vivo até hoje, se pudesse voltar no primeiro filho, não pensaria duas vezes, voltaria, não tenho arrependimento de nada”, disse olhando para o alto. Destacou que “quando eu tomo o meu café ou refeição, é porque cuidei primeiro de alimentar esses dois especiais aqui, porque são eles que me mantém viva”.
Daniel e Daniela nasceram na roça, próximo ao distrito de Santa Cruz, onde estudaram poucas semanas, mas em 2009 mudaram para a cidade, onde frequentaram duas escolas, Esteves Rodrigues e São Francisco de Assis. Na atualidade, como a permanência em propriedade rural em Mato Virgem tem contribuído para o bem-estar dos filhos, decidiu por ficar metade do tempo no campo, distante 28 km do centro da cidade.
“Mesmo não aprendendo muito, a escola é importante por possibilitar a sociabilização, e isso faz um bem danado à mente e ao corpo”, prossegue Maria, acrescentando que “é sofrido, tem dia que a gente se sente feliz, outros nem tanto, porque a luta exige muita força e é também sinônimo de felicidade, porque a tristeza não dá nada a ninguém”.