Bocaiuva recebe, nos dias 23, 24 e 25 de maio, a mostra Estação Arte Cidadania, no Complexo Cultural e Turístico Estação Ferroviária. O evento reúne exposições, oficinas, apresentações de teatro, música, dança, palestras e muita troca artística. As atividades são voltadas para todas as idades. Nesta entrevista, a idealizadora e curadora da mostra, Regina Souza, fala sobre a proposta do evento e sua importância para a cultura local.
Como surgiu a ideia de transformar o acervo da sua família em uma exposição permanente?
Tenho essa ideia há muitos anos, é um sonho muito antigo. Sempre vi minha mãe Zilah, minha avó Maria e minhas tias, todas elas, guardando recortes de jornais com matérias sobre seus irmãos, Henfil, Betinho, Chico Mário, e guardando cartas, objetos de família, livros e documentos. Quando minha mãe morreu, em 1992, fui arrumar suas coisas e já me deparei com muito material. Ela guardava, por exemplo, muitas páginas das Cartas da Mãe, da revista Isto É, onde Henfil escrevia para minha avó. Toda semana saía uma carta, onde ele, como que falando com ela, falava para o Brasil. Por um tempo também fiquei como guardiã do acervo da minha avó, logo que ela faleceu. E desde então venho tentando construir um espaço que pudesse abrir esse material, que tem um valor enorme. Entendi que não era uma história tão comum. Uma família em que todas as pessoas eram e ainda são comprometidas com a luta contra as desigualdades e injustiças sociais.
Em que momento você percebeu que a história dos seus familiares era também uma história do Brasil?
Isso eu sempre soube, porque desde criança já sabia da história do irmão da minha mãe que morava fora do país por perseguição política. Minha mãe nos orientava a não falar com ninguém sobre ele. Me lembro de minha mãe nos reunirmos na sala um dia para gravar uma fita k7 para ela mandar para ele no exílio. A forma de comunicação era cartas e fitas. E, ao mesmo tempo que tinha a história do Betinho, tinha o Henfil, com sua genialidade, criando suas charges, colocando o dedo na ferida do Brasil, o Chico Mário gravando seus próprios discos, numa época em que o mercado de música era completamente dominado pelas gravadoras multinacionais. Aí tinham minhas tias. Maravilhosas! Filó, uma fotógrafa incrível, Wanda, jornalista, escritora, mulher inteligentíssima, independente. Glorinha, super engajada em movimentos sociais e no carnaval! Desfilava todo ano nas escolas de Samba! Minha mãe e minha tia, Maria Cândida, também envolvidas em trabalhos sociais. A vida ia acontecendo e a gente vendo a história política do Brasil acontecendo na família. A ditadura, o exílio, a anistia, a campanha Diretas Já, a epidemia da Aids, a luta contra a fome. Só explicando que meus três tios eram hemofílicos e sempre precisavam de transfusão de sangue para conter hemorragias, e foram contaminados pelo vírus da Aids em transfusões de sangue. Aliás, o controle do banco de sangue no Brasil também se deve à luta do Betinho. Ou seja, meus tios e tias viveram com muita intensidade um período de muita efervescência política e cultural.
A exposição tem um olhar muito atento à trajetória das mulheres da sua família. Como foi resgatar essas histórias que costumam ser invisibilizadas?
Betinho escreveu sobre minha mãe, no livro A lista de Ailce, que ela foi sua orientadora intelectual, que foi através dela que ele virou gente. O que aconteceu é que minha avó tinha quase uma obsessão de que seus filhos estudassem, por isso saiu de Bocaiúva, contra o desejo de meu avô. E as mais velhas, Maria Cândida, Zilah e Wanda, foram as primeiras a estudar, mas também tiveram que trabalhar desde muito cedo para ajudar no sustento da família. E depois, cada uma também seguiu o seu caminho, muitos filhos para criar, só minha tia, Maria Cândida, teve sete! Mas a Wanda, por exemplo, teve uma produção intelectual imensa. A Filó criava seus filhos e era fotógrafa, inclusive muitas das fotos da exposição são dela. Estava sempre com sua câmera, registrando o trabalho dos irmãos, momentos e encontros da família. Apesar do pouco tempo para se dedicar aos próprios sonhos, não deixaram de lado seus ideais. Volto à tia Tanda, como a gente chama Maria Cândida. Depois dos sete filhos criados, teve um trabalho super importante nas Pastorais, da Ação da Cidadania, assim como minha mãe, a Glorinha. As mulheres foram a base dessa família, a começar pela minha avó.
Qual é o impacto que você espera que a Casa Figueiredo Souza tenha em Bocaiuva e na região?
Acho que levar as pessoas do Brasil para conhecerem as riquezas de Bocaiuva e região norte. As manifestações culturais, a arte popular, a gastronomia, a produção intelectual e artística. Então, é fazer esse intercâmbio da Pequena Bocaiuva para a Grande Bocaiuva. Foi inspirada nessa fala do Betinho, presente no seu livro “A lista de Ailce”, que criei a Mostra Estação Arte Cidadania.
Que mensagem você gostaria que o visitante levasse ao sair da exposição?
Eu gostaria que a exposição inspirasse as pessoas através dos exemplos de vida da minha avó, da importância que ela dava para a educação, dos meus tios e tias, que tiveram produções artísticas valiosas e que lutaram muito contra as injustiças sociais. Cada um de nós, dentro do nosso dom, pode fazer muita coisa pelo nosso país. Mas é preciso arte, educação, cultura, conhecimento. E foi isso que minha avó quis dar para seus filhos e filhas. Tem uma frase do Betinho, que está em um dos livros da Ação da Cidadania, que resume isso: “É através da cultura que um país muda. Não através da sua economia, nem pela política, nem pela ciência (…) O importante é ser cidadão, é ser gente. História é gente. Brasil é gente. E descobrir, reinventar gente, é a grande obra da cultura”.