Vestidos para a morte

Jornal O Norte
Publicado em 11/08/2010 às 11:48.Atualizado em 15/11/2021 às 06:35.

João Carlos de Queiroz


Jornalista



O Cemitério da Piedade, em Cuiabá, fica na ala central da cidade, próximo à antiga Escola Técnica Federal. É um cercado estranho no nervosismo urbano da Capital mato-grossense. De qualquer p rédio nas redondezas, a cerca de 300 metros, o cotidiano do tradicional Campo Santo pode ser 'apreciado' pelos moradores. Com binóculos, é possível acompanhar enterros e assistir o 'chora e reza' das pessoas o dia inteiro. Quanto a fantasmas, não se sabe ainda se alguém conseguiu captá-los com lentes de aproximação, mas devem estar por lá...



Essa movimentação do Cemitério da Piedade se iguala, em parte, ao centro de velórios da Capela Jardins, perto do Pronto Socorro Municipal de Cuiabá. Não há dia em que um defunto, ele ou ela, não esteja esticado numa das salas abertas do esquisito lugar, à visão geral dos residentes nas imediações. Conheço gente que diz almoçar com os olhos atentos no vai e vem choroso dos parentes de quem 'bateu as botas' e é velado por lá. Outros, mais críticos, afirmam não suportar o cheiro de velas e flores que chegam aos andares mais altos dos prédios próximos...



Não é, convenhamos, nada confortável acordar, tomar as refeições e ir dormir com mortos à vista. Há, porém, quem não se incomode com isso. Os antigos funcionários do IML do Boa Esperança, que entrevistei quando no Jornal do Dia, disseram qu e nem o apetite deles diminuía por causa da presença de defuntos à espera de necrópsia. Os legistas pediam que os auxiliares colocassem pedaços de sanduíches em suas bocas, enquanto os bisturis cortavam as carnes rígidas dos cadáveres, por vezes em decomposição adiantada e com vermes graúdos à vista em cada poro semi-decomposto pela putrefação. Nada capaz de dificultar a entrada triunfal de pão com mortadela garganta abaixo...



Essa 'intimidade' com a morte costuma extrapolar a racionalidade. Explica-se: no Cemitério da Piedade, por exemplo, as cercas elétricas estão sempre depredadas, já nem funcionam. As depredações são causadas pelo grande número de viciados em drogas que praticamente 'reside' dentro do cemitério, a par tir de determinado horário, aproveitando-se do descuido sonolento do vigia. Mas, questiona-se, por que têm tanto interesse em adentrar num lugar tão sombrio? Para surrupiar roupas e outros objetos dos mortos rec entes, é a resposta que motiva essas profanações contínuas.



Os vândalos não hesitam em arrombar sepulturas e deixar os defuntos completamente nus, conforme vieram ao mundo. Muitos entram maltrapilhos nesse cemitério e saem dali elegantes, trajando ternos de marca e outros apetrechos que a família fez questão de colocar nos caixões.



Esse caso não é de espantar, levando-se em conta uma barbaridade registrada há anos no interior de São Paulo, quase em moldes semelhantes, porém bem pior. O flagrante criminoso aconteceu a partir do mau-cheiro insuportável que tomou conta da cidade, nas cercanias do seu único cemitério. As queixas foram se acumulando e a polícia agiu para descobrir o que sucedia lá dentro. Em resumo, o dito cemitério possuía uma espécie de porão cimentado, com porta de aço e tudo o mais. Ao abri-lo, eis que a polícia descobriu o motivo das queixas diárias da população: dezenas de cadáveres estavam amo ntados ali, nus. Muitos em fase irreconhecível, tal o adiantado da decomposição.



O negócio, comandado pelo coveiro e donos de funerárias, consistia em furtar não apenas a roupa dos defuntos, mas também as urnas, que eram revendidas normalmente aos estreantes no além. Essa descoberta chocou a população, tomada de revolta pela desumanidade e desrespeito com que seus mortos eram tratados. Havia até um gato perambulando feliz no interior desse porão. Obviamente, alimentava-se de cadáveres e da água da chuva. O animal foi retirado dali pelos bombeiros.



Já em Cuiabá, no Cemitério da Piedade, à falta de condições para levar os pesados caixões funerários, os larápios limitam-se mesmo às roupas, dentes de ouro, pulseiras, etc.. Dizem que até aplaudem quando ocorre alguma tragédia e o cemitério recebe mais corpos do que a cota diária normal...



Portanto, para os mais desavisados, muito cuidado quando for comprar alg uma roupa usada nessas lojinhas que existem em cada esquina. Um dos clientes, que omito o nome, depois de se vestir feliz com uma roupa chique para ir a uma festa, eis que descobriu, no bolso interno do paletó, a dentadura e cópia do registro de óbito do verdadeiro dono daquela peça. Ele a adquirira no dia anterior, na loja de usados mais procurada do bairro.



Vale ainda acrescentar: sempre que precisar de roupas novas, prefira suas velhas. Se optar pela economia das usadas, poderá estar revivendo os tempos de baile de quem já juntou as pernas nas trevas há tempos...

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