Vamos matar o porquinho

Jornal O Norte
Publicado em 20/04/2009 às 10:01.Atualizado em 15/11/2021 às 06:56.

Márcio Adriano Moraes


Professor de Literatura e Português


marcioadrianomoraes@yahoo.com.br


 


Finalmente, a filha mais velha passou no vestibular. O pai todo eufórico brada forte: “Isso merece uma festa, vamos matar o porco”. Mas caçulinha pensou no animal gordo e imundo que comia os restos de comida, e sentiu nojo. Disse à mãe que não achava certo matar o porco para comer de sua carne, por dois motivos, primeiro, porque é maldade e, segundo, porque ele é pegajoso. E para fortificar sua decisão, disse à mãe que Deus mandou aos homens não matar e leu um trecho bíblico: “E enfim, como o porco, que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; tê-lo-eis por impuro. Não comereis da sua carne e não tocareis nos seus cadáveres: vós os tereis por impuros” (Lv. 11, 7s). A mãe olha para o pai e diz com as mãos na cabeça: “E agora, José?”



Todo o Antigo Testamento, sendo inspiração Divina, foi escrito em uma determinada época, por pessoas diferentes, em um contexto diferente e para fins diferentes. Uma das grandes preocupações do Antigo Testamento eram as doenças que assolavam o homem, tanto é que, naquele tempo, um leproso tinha que viver isolado e era considerado “impuro” (cf. Lv. 13). Hoje, com recursos médicos, um portador de hanseníase é submetido a tratamento. Logo, não só a Bíblia, mas a cultura local da época proibia o consumo de carne de porco por questões de higiene sanitária, já que esse animal pode transmitir doenças, como a cisticercose. Até hoje, há um cuidado muito especial na distribuição da carne de porco.



“Mas se está na Bíblia, temos que cumprir, por isso, vou ser vegetariano, para não ter dúvidas”. As leis do Antigo Testamento encontram sua perfeição no Novo Testamento com os ensinamentos de Jesus. Com relação a essas prescrições alimentares, Jesus rejeita tudo isso e até condena os fariseus que se obrigavam a tais observâncias, mostrando que isso era irrelevante (cf. Mt. 15, 2. 10-20; Mc. 7, 1-23; Mt. 23, 25). Nenhum alimento é puro ou impuro para o Cristo, logo se pode comer de tudo: “‘Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode tornar impuro, porque não lhe entra no coração, mas vai ao ventre e dali segue sua lei natural?’ Assim ele [Jesus] declarava puros todos os alimentos” (Mc. 7, 18s). As impurezas, os maus pensamentos, o “podre” do ser humano está no seu coração, logo afirma que “não é o que entra pela boca que torna o homem impuro; mas, pelo contrário, aquilo que sai de sua boca” (Mt. 15, 11).  



Mas, ainda que o Mestre tenha dito que nenhum alimento pode tornar o homem impuro, há muitas pessoas que preferem não comer determinados alimentos, por várias razões, por motivos de saúde, por respeito aos animais, porque é mais saudável, ou por outra interpretação bíblica. Se o filho caçula não quiser comer do porquinho, obrigá-lo a comer é que seria um “ato impuro”. É preciso respeitar os hábitos alimentares de cada um. Eu mesmo não como jiló, e ai de você querer me obrigar! Mas há outros casos um pouco mais sérios, de pessoas que se sentem ofendidas ao ver um amigo comendo algo em sua frente que ele abomina. O que fazer? O sábio apóstolo Paulo, em sua Carta aos Romanos, apresenta-nos, em seu capítulo 14, ensinamentos sobre a tolerância: “Acolhei aquele que é fraco na fé, com bondade, sem discutir as suas opiniões. Um crê poder comer de tudo; outro, que é fraco, só come legumes. Quem come de tudo não despreze aquele que não come. Quem não come não julgue aquele que come, porque Deus o acolhe do mesmo modo”  (Rm. 14, 1ss). “Sei, estou convencido no Senhor Jesus de que nenhuma coisa é impura em si mesma; somente o é para quem a considera impura. Ora, se por uma questão de comida entristece o teu irmão, já não vives segundo a caridade. Pela comida não causes a perdição daquele por quem Cristo morreu” (Rm. 14, 14s).



Assim, fica respondida a segunda questão do rapazinho. Quanto à primeira questão, lê-se no quinto mandamento: “Não matarás!”. Mas esse mandamento “Não matarás”, que incute em si muitas outras questões pertinentes ao assunto, como aborto, legítima defesa, eutanásia, suicídio, escândalo, paz, refere-se aos seres humanos. Quanto aos animais, Deus permite ao homem administrá-los e também utilizá-los para alimentação. Ora, não foi essa uma das primeiras ordens de Deus ao homem? Cuidar de toda a sua criação? (cf. Gn. 1, 28ss). Os animais, como criaturas divinas, merecem todo respeito e carinho do homem, a exemplo de São Francisco de Assis ou de São Filipe Néri, devemos tratar os animais como criaturas de Deus em sua beleza. Contudo, em relação à servidão dos animais, lemos no §2417 do Catecismo da Igreja Católica (CIC): “Deus confiou os animais à administração daquele que criou à sua imagem. É, portanto, legítimo servir-se dos animais para a alimentação e a confecção das vestes. Podem ser domesticados, para ajudar o homem em seus trabalhos e lazeres. Os experimentos médicos e científicos em animais são práticas moralmente admissíveis, se permanecerem dentro dos limites razoáveis e contribuírem para curar ou salvar vidas humanas”. É claro que de modo algum, a Igreja aceitaria os atos de violência contra animais, pois isso seria um afronto à criação divina: “É contrário à dignidade humana fazer os animais sofrerem inutilmente e desperdiçar suas vidas” (CIC, §2418).  Mas devemos ter o cuidado de não confundirmos animais com seres humanos, pois da mesma forma que eles não podem ser mal tratados, “é igualmente indigno gastar com eles o que deveria prioritariamente aliviar a miséria dos homens. Pode-se amar os animais, porém não se deve orientar para eles o afeto devido exclusivamente às pessoas” (CIC, §2418,).



Sob a mesa, aquele suculento leitão assado. O garotinho olha para mamãe e diz: “Tá bom, deixa eu só experimentar. Hum... Delííícia!”.

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