Um rio para viver

Por Chico Mendonça

Jornal O Norte
Publicado em 10/10/2014 às 01:23.Atualizado em 15/11/2021 às 16:38.

*Chico Mendonça

Um país é mais que sua extensão de terra e maior que a população que nele habita. Um país é essencialmente o resultado de como as pessoas tratam o lugar em que vivem, sejam elas autoridades públicas ou cidadãos comuns. Não é possível a alguém dizer que ama a sua terra se dela não cuida, o que significa melhorá-la, embelezá-la e devolver a ela em cuidados o que ela dá em condições de sobrevivência e inspiração de vida. Um jardim ou um empreendimento sustentável, também do ponto de vista ambiental e social, são demonstrações deste amor. É este cuidado que gera pertencimento e unidade entre conterrâneos. A referência de ser de um certo lugar como parte fundamental da construção lenta e contínua da identidade e do sentido de viver. “Qualquer amor é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”, disse Riobaldo Tatarana, em Grande Sertão, Veredas.  

O Brasil é ainda um projeto de país. Amamos pouco este lugar. É triste dizer isso, mas não posso dizer outra coisa ao ver o que acontece com o rio São Francisco. Primeiro, porque não se trata de um caso isolado de descuido. Afinal, não é apenas ele que está poluído por esgoto doméstico e industrial, agrotóxicos e fertilizantes, não é exclusividade deste rio o desmatamento, o assoreamento, a redução da vazão de suas águas e a mortandade de seus peixes. Não é fácil encontrar rios brasileiros que tenham águas limpas, ecossistema equilibrado e prosperidade em suas margens, apesar de serem eles fontes primárias da vida. E também porque, há décadas, o São Francisco anuncia que está morrendo e tudo o que se faz é agravar a situação.  

Pois secou, pela primeira vez, neste setembro, uma das principais nascentes do maior rio totalmente brasileiro, 2.830 km da nascente à foz, que corta cinco estados, conhecido como o rio da integração nacional. As causas imediatas foram a longa estiagem e o fogo, provocado, na maioria das vezes, propositalmente. Mas existem as razões de longo curso que vitimam toda a extensão do rio: desmatamento, erosão das margens, assoreamento do leito, poluição por esgotos e substâncias químicas e uso abusivo de suas águas.  

Uma ligeira pesquisa no Google é suficiente para descobrir que dos 36 afluentes perenes do São Francisco, 16 agora secam durante um período do ano. O desmatamento de sua bacia é de 2 a 3 vezes mais rápido do que na bacia Amazônica. Dos 204 milhões de hectares de cerrado nela contidos, 57% já desapareceram, da mesma forma que 96% das matas ciliares. Além de sete hidrelétricas que modificaram substancialmente seu ciclo hidrológico, o São Francisco ainda sofre com as monoculturas irrigadas, responsáveis por 68% de toda a água retirada de seu leito, e com o ciclo econômico da mineração, siderurgia e carvoaria. Cerca de 40% da madeira transformada em carvão ainda vem de matas nativas.  

O impacto ambiental fica claro por estes números. O humano é mais sutil, mas dói do mesmo jeito. Todo mundo sabe, um rio, ainda mais deste tamanho, por onde passa inunda muitas vidas. No leito de um rio correm águas e histórias, tanto umas quanto outras intensamente. Não há quem nasça às margens de águas correntes que não as leve na alma o resto da vida, trazendo memórias de muito longe. Quando um rio, por maus tratos, indiferença e descuido, vai deixando de existir, além dos peixes, da água e riquezas que ele gera, são lavadeiras, caboclos d’água e pescadores que somem, são histórias que também começam a morrer por impossibilidade de tradução geográfica do caso contado. Mas são, tão triste quanto, histórias que deixarão de nascer aos olhos de quem está apenas começando a olhar o mundo. É como se não tivesse nascido ainda e Riobaldo Tatarana deixasse para sempre de existir. Por falta de rio para poder atravessar.

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