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Terça-Feira,15 de Outubro

Tudo a termo - por Eduardo Lima

Jornal O Norte
05/04/2007 às 09:38.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:01

Eduardo Lima

Tiver tem um custo que não se cobra de maneira formal ou conhecida. Nas caminhadas que faço observo esta imposição da existência, tão natural, tão compreensível e capaz de inúmeros e criativos disfarces. Já disse Millor que a “velhice chega exatamente quando não temos mais juventude para enfrenta-la”. Bem humorado e inteligente Millor faz do óbvio o mais que óbvio. E é esta visão que me corteja nos instantes de sentar-me num banco de praça e ver a vida muscular. Eu mesmo já não sou menino, mas é possível que durma em mim algo desentendido das limitações de agora.

Assim é que vou vendo como cada qual reage ao tempo, que lhe afina as pernas e curva o corpo. Há roupas modernas, modelos ousados que repetem a cara dos dias, modelos celebrados pelos novos paradigmas da cultura física. Deste modo, mesmo aos oitenta, uma mulher pode ser bem delineada, deixando ver curvas e outras insinuações que lembrem a juventude. Há, já, como rejuvenescer sem que se aposente a dignidade, tão necessária à postura e ao senso.

Mas se assim age a estética, primeira e mais denunciadora das visões, o que se esconde na idade é mais valioso. A sabedoria, a virtude crítica, a sensibilidade para compreender melhor o corpo, suas dores e seus prazeres. E mais me chamou a atenção: todos que observo parecem pessoas mágicas, encantadas, tocadas por um abandono exuberante. Como se não houvesse problemas, como se fosse possível em meio ao mundo alguém se ausentar inteiro. São pessoas que buscaram e mereceram paz, concluo. Pessoas que lutaram muito, trabalharam muito e eventualmente guardaram alguma coisa.

Assim é que se podem deixar levar, calmamente, respirar o ar da manhã com indiferença e cumprimentar com euforia. São pessoas felizes, intensas, que falam sobre futilidades e vivem com moderação. Nesta viagem foi que vi ao longe um carro lindo. Destes raros, que não se vê a toda hora. Vermelho, lustrando, parecia chamar para si todo o sol do dia. É conversível e imaginei um cabelo molhado, uma avenida à beira mar, um vento leste. Ao volante um senhor, já velhinho, diria. De boné, camisa estampada colorida, todo verão, rindo encantado - desfilava orgulho ostentando o carro, motivo decerto de um sonho seu. Um velho sonho.

Deu-me pensar que aquilo lhe houvesse custado parte da vida e, quando jovem, não podendo, veio a possuir o carro agora, daí desfilar tão à vista. Eis a vida. Cada coisa a seu tempo. Para tudo há uma hora. Tudo é perfeitamente adequado. Aquele era o instante do moço, do moço velho, cujo sorriso atestava a delícia da vitória. Se jovem, num carro assim, talvez se esquecesse do tempo e o tentasse vencer numa estrada louca. Talvez virasse um bólido e varasse a madrugada de risco e morte.

Talvez esnobasse as moças. Talvez risse dos amigos. Talvez gastasse a mais. Talvez se sentisse melhor do que os outros. Talvez não tivesse tempo. Talvez nem compreendesse dores e delícias. O velhinho do carro era um menino brincando. E dizendo no sorriso maroto que, embora pareça tarde, todos temos nosso instante de gloria e bem estar - e é preciso sabedoria para aproveita-lo. Tendo feito tais íntimos comentários senti a perna puxando, um ensaio de cãibra, alguma coisa avisando sobre a idade e as surpresas que a malina reserva. Segui mais devagar pela manhã, pensando no futuro.

Afinal, moderação e sonhos mantêm a vida.

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