Adilson Cardoso
Outro dia, no ponto de ônibus da Praça Doutor Carlos, observava os movimentos frenéticos daqueles inconstantes personagens da vida real. De repente senti um leve toque na perna, como um pequeno felino que brinca de exercitar suas estripulias. A mão pequenina tocou-me novamente com certo acanho. Era uma criança de pele morena clara e cabelos sujos em pequenos caracóis, pés descalços aparentando seis anos de idade. Pediu-me com voz encolhida que lhe desse um trocado.
Veio-me naquele momento a figura doce do meu pequeno Airon que, por força das tempestades do relacionamento matrimonial, não divide mais comigo o mesmo teto, o que está me fazendo morrer um pouco a cada dia.
Movido pelo instinto que violenta qualquer razão desejei que essas quadrilhas denominadas de bancos que lucram descontroladamente com suas taxas e impostos gozassem um pouquinho do delírio World Trade Center 2003, já que sua fome de capital espreme as vísceras do terceiro mundo, colaborando diretamente para que essas singelas figuras sejam sempre presentes no nosso meio.
Também pensei nos pais, dois crápulas embriagados, inconscientes, que uniram suas genitálias para um prazer imediatista que, na conseqüência, brotara um ser que respira, se veste e come e ainda se esqueceram que nesta arena canibalizada pelos dentes do vil metal quem não produz não pode consumir.
O monólogo silencioso injetou um vazio entre o pedinte e o juiz que precisa julgar a sentença sem aumentar o sofrimento da vitima. Voltei a mim, vendo sua pequena expressão de incredulidade pelo meu semblante irritado.
Perguntei onde estavam seus pais; me disse que sua mãe estava em casa e o pai ele não sabia, mas suas irmãs estavam no mercado caçando verduras para o almoço. Conversamos como se fôssemos dois adultos ou um padre com o fiel na sala de confissão. De um trocado que pediu lhe ofereci um lanche numa pastelaria popular do Quarteirão do Povo, aumentando sua confiança em mim e minha ira diante de tanta falta de zelo dispensada a essas indefesas figuras.
Veio-me o número alarmante de assaltos e assassinatos seguidos das lindas oratórias de autoridades que não agem na raiz do problema. Ao invés de prevenção vão remediar quando o paiol já estiver em atividade. Deixei Samuel seguir sua sina, após matar sua fome e dar-lhe um chinelinho imitação de havaianas, conseguindo arrancar-lhe um sorriso de felicidade efêmera.
Se o filósofo tivesse sido ouvido, todos teriam a preocupação de Educar para não castigar mais tarde. É preciso aguar essa plantinha que anda sequiosa na sequidão deste chão. Os frutos dela que virão amanhã são de responsabilidade de todos.
De volta ao ponto das pessoas inconstantes, os ônibus continuam parando lotados e os passageiros que ainda não conseguem entender o que é uma fila vão querendo entrar todos de uma só vez. O motorista com cara de nem aí espera encher para partir. O cobrador com um fone no ouvido acha que o tumulto não é da sua conta. E eu sentado no banco aguardando minha vez, quando se aproxima de mim um senhor de idade avançada, olhos remelados e uma bengala na mão, que serve de apoio, pedindo pelo amor de Deus que lhe dê uma ajuda para comprar comida. Balancei a cabeça negativamente e me levantei por não saber o que dizer.