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Quarta-Feira,2 de Julho

Tempo de permanência

Jornal O Norte
Publicado em 31/03/2011 às 08:43.Atualizado em 15/11/2021 às 17:25.

Leila Silveira (*)



Nos tempos que trabalhei no RH da Metalúrgica Norte de Minas (que tantos empregos gerava nesta cidade, e que foi canibalizada por uma concorrente multinacional, aos olhares passivos dos políticos, sindicalistas e lideranças regionais), era comum a utilização de certas expressões técnicas relacionadas ao processo, e que acabamos por assimilar no dia a dia, entendo de forma ainda que leiga, o espírito da coisa!



Uma das que nunca esqueci e incorporei no meu cotidiano de psicóloga e educadora foi a do tempo de encharque, que significava para os técnicos o tempo que o material ficava dentro do forno, submetido a uma determinada temperatura, para poder realizar o tratamento das peças fabricadas.



Aprendi que as peças precisavam ficar este tempo, dentro do forno, do contrário não conseguiam as características desejadas e eram reprovadas pelo controle de qualidade. Algumas viravam sucatas, outras retornavam para o forno, enfim, que era preciso respeitar este tempo de convívio previsto nas normas de processo dos fornos.



Toda vez que alguém, por pressa ou descuido, não deixava isto ocorrer era fatalmente penalizado com a rejeição das peças enfornadas.



Vivemos um tempo em que a velocidade, a superficialidade, o consumismo, a quantidade, a pressa, o descarte tem provocado efeitos devastadores nos nossos relacionamentos, nas nossas emoções, na nossa vida sentimental, na nossa saúde física e mental, nos nossos valores, na nossa paz interna, no nosso desfrute terreno.



Em psicologia, entendemos que o amor, um laço, uma indispensável experiência e recurso para ajudar a consolidar qualquer relação com o outro, seja o marido, o amante, a amiga, os filhos, os irmãos, os parentes, os colegas de trabalho, os vizinhos, os clientes, os alunos, os animais domésticos, fundamental no tipo de relação que decidimos construir com eles.



Exceto nos raros casos de amor à primeira vista, o tempo de convivência que é o alicerce na contínua construção e manutenção do amor, do laço que une duas criaturas neste mundo, ou que nos faz apegar a algo, a algum objeto.



Toda criança cresce com aquela boneca predileta, às vezes surrada, mas que não abre mão de jeito nenhum, nem a substitui por nenhuma outra mais cara, mais moderna ou esvoaçante.



Ninguém troca seu cachorro (mesmo que vira-lata), seu gato sem pedigree,  seu velho fusca, seu marido turrão, seu filhos desobedientes, seus velhos livros, suas fotos antigas, aquela velha calcinha ou cueca desbotada, a menos que tenha sido extinto o amor, o laço que nos prende a elas, e que se torna mais forte com o tempo de convivência.



É nos dando este tempo que conseguimos verdadeiramente lamber um picolé até o palito, que verdadeiramente apreciamos um passeio por um jardim, que fazemos amor com prazer aproveitando e experimentando cada movimento, cada posição, cada suspiro, cada sussurro, cada carinho, cada disparar de nosso coração.



A sociedade de consumo nos desvia deste comportamento saudável e necessário para usufruir de nossos objetos mais caros, nos incitando a trocá-lo logo por outro, impedindo nossa vivencia com eles, aumentando nossa carência e sensação de vazio, de não pertencimento.



Passar tempo junto não significa carregar as coisas conosco o tempo todo, ficar junto sufocando nosso companheiro de jornada ou se apegar a ele tirando sua liberdade ou oxigênio, mas sim permanecer com o nosso desejo repousado nele.



Focar o nosso olhar, apenas no que não temos, no que vamos ter, na próxima troca, no próximo carro, casa ou celular, apenas reforça nossa sensação de vazio, além de ser um verdadeiro desperdício de tempo, de energia, de vida enfim.



O que torna alguma coisa ou algo valioso para nós é o envolvimento, a profundidade do interconhecimento, cuja intensidade cresce na medida em que nos damos à chance passar mais tempo juntos.



Assim, com a ajuda indispensável e preciosa do tempo, vamos poder construir nossas verdadeiras histórias com as pessoas e objetos que nos cercam, que nós escolhemos para dividir experiências, acumulando juntos perdas e ganhos, entrelaçados pela essência maior de nossa existência aqui na Terra, que é viver e experimentar o amor, único e verdadeiro antídoto contra a fúria consumista que devasta como um tsunami os valores, a consciência e o coração do homem moderno!



(*) Psicóloga

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