Eduardo Lima
Ora, faça crônicas, disse o amigo! Gato fogueteiro, dia desses sobrevoei a realidade, pus-me a escrever sobre ela de maneira crua e depois, assustado, me perguntei: não seria a crônica uma fotografia, um instantâneo dos dias? Não apenas isso, isso também. Além a crônica tem um caráter quase literário, esquecidas as observações datadas, pois há quem pense que a crônica é menor, nem estilo é.
Crônica é alguma coisa solitária, vale o olhar e dele se aperceber o autor. Fazer crônicas sobre acontecimentos de política é, por exemplo, um grande risco. A política no Brasil serve mais à charge ou à análise vigorosa dos críticos, nunca a vislumbres passionais. Dou razão a quem me lembra sobre o estado de manter-me inofensivo. Alerta, porém imaculado. Não é da crônica o comprometimento.
Da crônica, a doçura, não o amargor. Da crônica a luz. Da crônica o frescor e a manhã, ou um fim de tarde recortando a serra. Da crônica um passarinho de nada, um pintassilgo talvez ou um ganido na madrugada anunciando o trauma. Da crônica a água e outras substâncias de vida, elementos orgânicos, tais como gineceu e pétalas. Da crônica, abraços para amigos e audição, novas canções ou as poesias alucinadas de sangue a escorrer do peito, num rito de amor e morte. Da crônica uma broa de fubá. Uma mão. Duas mãos. Afagos e rumores, cetim, banho e sais da Lush.
Tem lógica, então, o puxão de orelhas que me aplicaram. Não devo mesmo, cronista sazonal ater-me a fatos, muito menos de bandalheira. À crônica cabem lufadas de vento. Espalhar aromas no quarto, uma especial da Bulgari, imitação caríssima e quase. Depois ler. À crônica cabem uns apanhados no ar, os ligeiros, do que passa e se vai.
É preciso perceber o inconfesso para fazer uma crônica existencial. Tudo que seja morte é a morte da crônica, única, arrebatadora. Tudo que seja vida é a vida da crônica, forçuda, arrombadora, uma porta atrás de outra porta escancarada. À crônica cabem línguas úmidas e beijos de café, beijos de colutório, beijos de moças varridas de indecência.
Crônicas devem falar de rios cheios de água e de peixes que saltem prateados, tais como os de Adélia Prado saltam no vão da cozinha num poema sobre alegria. Crônicas devem ter um riso pronto e uma lágrima para surpreender. Crônicas têm saudade e vêem além, predizem, adivinham toda coisa à toa.
Falam de ternura e preguiça, convidam a um deitar de colherinha e quando viram aroma cheiram às tortas mais saborosas, a maçã, a alfazema e eventuais olores de rapariga e penteadeira. Assim é que me dou à miudeza da crônica e nada mais. Juro que não as farei sobre acontecimentos inúteis ou pessoas inúteis que escrevem esta história inútil a respeito de um país temporariamente inútil.
Não espero, se não é da crônica esperar para não ficar melancólica, não espero, nem por tibieza, que haja uma revolução de palavras e que, por fim, cronistas e poetas, os abstratos, os mundanistas possam saltar sobre a realidade e puxar os homens, trazendo-os à luz. Puros, não somos, entretanto, bobos. Crônica se faz é na bigorna, forjando um sonho, todo dia. A crônica, por humildade sabe, é apenas uma canção: uma canção para dormir, uma canção para acordar.
PS – Vai um recado para Paulinho Pedra Azul que anda lendo e contou para mais gente. Saulo Laranjeira também leu e lembrou umas histórias. Eu sou rico de amigos.