Serrano de Pilão Arcado – A Saga de Antônio Dó

Jornal O Norte
Publicado em 23/06/2009 às 09:58.Atualizado em 15/11/2021 às 07:02.

Leonardo Álvares da Silva Campos *



Serrano de Pilão Arcado – A Saga de Antônio Dó. Uma obra que ainda aguarda, do alto de sua plenitude, aplausos por todos os recônditos, aqui e no exterior, quando, no porvir, com certeza terá traduções em outras nações, por sua consistência tão bem dirigida pela reconhecida sabedoria do autor. É reveladora de uma realidade brutal do Brasil do final do século XIX e início do século XX, quando reconhecidamente o opressor, como uma ave de rapina e dentro de uma farda que nem sempre era dignificadora da espécie humana, desrespeitava o oprimido até as raias do absurdo.  O leitor melhor dotado de uma boa espiritualidade, em que pese o fim previsível porque a saga do personagem central é conhecida pelo menos no meio dos pesquisadores, se comove com tantas agruras, virando um fanático torcedor ansioso pela chegada da justiça naquele sertão praticamente indômito para estabelecer a ordem no caos.



É neste cenário de caos, traduzido pelo desrespeito aos menos bafejados pela sorte, que se descortina o que eu asseverei em meu recente livro, A Inacabada Família Humana: até os palermas reagem nas situações aflitivas, voltando-se contra a justiça dos chafurdados na lama, os mesmos potentados que presentemente vão devorando esta nação, locupletando-se ilicitamente em detrimento dos menos favorecidos.



Petrônio Braz conduz, no mesmo ritmo dos melhores maestros dirigindo e dando vida à orquestra, a transição perfeita do rurícola honesto, bondoso e prestativo, respeitador dos valores da sociedade estabelecida do seu tempo, para o temido Antônio Dó, que de vítima passou a algoz, mostrando a vulnerabilidade e os temores dos detentores de patentes lustrosas quando apanhados fora do seu meio que os fazem sentir-se acima do bem e do mal, alongando-se paralelamente, porque pertinente ao ambiente em que os fatos se desenrolaram, na vida e nos costumes dos ribeirinhos do Rio São Francisco, cidadãos pacatos e os lídimos preservadores das tradições e do folclore brasileiros, transmitidos oralmente de geração para geração.



Vencido pela seca no sertão de Pilão Arcado, na Bahia, lugar de gente valente e povoação diminuta pelas lutas sangrentas, entre 1840 e 1848, entre as famílias de um comendador e de um português, o patriarca Benedito Antunes de França, que antes pensara em acompanhar o lendário Antônio Conselheiro, homem puro e religioso fanático vitimado, sem culpa no cartório, pela soberba da emergente República, comunica para a família a sua decisão de embarcar, “sem olhar pra trás”, em busca de um lugar melhor em terras mineiras. Antes do anoitecer do último dia de abril de 1878, os Antunes de França viram pela última vez o lugarejo de Pilão Arcado, escondido no pontal, na primeira curva do São Francisco. 



Temos então, daí em diante, um dos pontos a enriquecer as nossas letras. Com as águas marulhando suavemente ao encontro do costado do barco, vencendo lentamente a correnteza, numa viagem de trinta e cinco dias rio acima até Pedras dos Angicos, ou Pedras de Cima (atual São Francisco), o dono do barco, remeiro e tripulação vão conversando, na mais rica sabedoria e mitos sertanejos, porque: “Tudo que sucede na carreira do rio a gente fica sabendo. As notícia do sertão viaja no lombo dos burro, na beirada do rio elas sobe e desce nas água. O rio tem vida. Tudo que sucede, sucede no rio ou perto dele. Eu gosto do rio.”



Desfilam na narrativa o Compadre, ou caboclo d’água, cuja alegria é a desgraça do canoeiro e que, perto do porto de Carinhanha, “fez cair uma barreira em riba d’uma barca matando a tripulação toda... qu’eles num quis dar fumo pr’ele”; a Iara, a mãe d’água, personificadora das seduções e dos perigos do rio, com seu rabo de peixe e corpo de mulher, cabelo verde que “cobre as vergonha dela de tão grande”; e até o diabo, para o qual um pobre lavrador  vendeu a alma para ficar rico: “Numa encruzilhada, brotando da terra, formou-se um redemoinho forte, levantando folhas secas e gravetos para o ar, cercando o lavrador: -   Vosmecê foi escolhido pra ser rico. Abjure suas crendices, renegue tudo e eu farei de vosmecê um homem rico.” E mais: a mula-sem-cabeça, o lobisomem, o romãozinho (uma espécie de diabo miúdo) e o caipora, entre outros.



As dúvidas se fazem presentes: “Por que será que São Jorge foi esbarrar na lua, montado no cavalo?” E, também, a agudeza de espírito: “Vancê sabe quantas arrobas pesa a lua?... É só uma. A arroba tem quatro quarta e a lua tem quatro quarto. Elas são igual.” “Tinha um jatobazeiro que gastou oito machadeiro pra derrubar ele”, cujo tronco foi levado para Remanso a fim de ser usado para exterminar uma cobra, “bicha ruim”, que tinha ofendido uma escrava.



Na travessia ainda há tempo para o registro histórico da célebre Maria da Cruz, nas palavras do remeiro: “De amanhã pra depois a gente vai passar no Porto do Salgado e, logo depois, nas Pedras de Baixo. Lá, faz tempo, morava uma dona que acudia pelo nome de Maria da Cruz, que era que nem homem. Mandava em tudo. Diz qu’ela era uma mulher maligna. D’uma feita ela mandou matar pra mais de vinte pessoa e mandou enterrar numa vala perto da igrejinha de lá... Diz qu’ela fez uma revolução e foi presa.”  



O autor, um humanista que por toda a sua obra, de 596 páginas, leva o leitor a não se esquecer da imortal assertiva do escritor Euclides da Cunha, de que o sertanejo é, antes de tudo, um forte, demonstra a sua vasta cultura, seu domínio pleno das várias áreas do saber, utilizando-se do Padre Alkmin, da São Francisco de então, um apaixonado pela literatura francesa e não afeito às coisas terrenas, exercendo com parcimônia as emulações da pobreza de Cristo, quando o ainda menino Tonho (Antônio Dó) e seus familiares seguiam em sua viagem rio acima. Passeia, na figura do padre, pela Revolução Francesa, pela religião (“sem obediência não existe”), culturas fenícia e judaica, Rousseau, Júlio Verne, Rabelais, Balzac, Machado de Assis, Descartes, Spinoza, ateísmo (“os cientistas não entendem que Deus está além da razão”), Aristóteles, Richepin, Montaigne, Epicuro, Padre Vieira, o Papa Bonifácio VIII (“afirmou publicamente que não acreditava na imortalidade da alma e na vida eterna e que os prazeres dos sentidos não eram pecados”), São Paulo, Alexandre Herculano, Verdi e outros mais, para envolver tudo e todos no desenvolvimento de idéias seguras e entreçadas, com conotações etnológicas, concluindo então com o religioso pensando, enquanto olhava para um tamarineiro: “Teria eu, por acaso, descido aos infernos? Não seria esta a árvore que esconde em suas folhagens o ramo flexível de ouro que permitirá ao seu portador descer aos infernos, no centro da Terra?”



Em seu heróico esforço de pesquisa, que na orelha do livro há a informação de que lhe custaram vinte e três anos, resgatando, em forma romanceada, o verdadeiro Antônio Dó, com o que venceu o desafio que se impôs de revelar a sua personalidade, a qual “ficou entalhada nos escaninhos secretos do meu cérebro”, Petrônio Braz, também jurista e autor de uma série de livros nesta área e ainda Jandaia em Tempo de Seca, membro de diversos sodalícios literários, traz, no linguajar típico do sertanejo, no mesmo diapasão de Guimarães Rosa, a transformação do bom camponês, por força de deploráveis injustiças que sofreu por parte dos mandatários de então,  em temido chefe de jagunços, vencendo todas as expedições contra si enviadas pelo Governo. Os poucos policiais perseguidores que escaparam, em tantas investiduras, enalteceram a valentia do estrategista em combates Antônio Dó, criando-se uma verdadeira lenda em torno do herói-bandido.  



Trata-se, assim, de uma obra completa esta Serrano de Pilão Arcado – A Saga de Antônio Dó, destinada a ultrapassar fronteiras, fazendo-me mesmo lembrar das palavras  de Euclides da Cunha, em Os Sertões, de que “Canudos não se rendeu...”, sendo mesmo possível parodiá-las da forma seguinte: Antônio Dó não se rendeu. Exemplo único no setentrião mineiro, resistiu sem se esgotar. Caiu ao amanhecer, quando caiu vitimado por uma mão-de-pilão desferida em sua cabeça por um jagunço infiltrado, quando, não muito distante, rugia a última expedição enviada que nem chegou a atacar.



Seu pai, Brasiliano Braz, também um expoente do saber que tive o prazer de conhecer em São Francisco, contemporâneo dos tempos finais do ex-campônio chefe de jagunços, também registrou algo parecido: “Antônio Dó nunca foi vencido. Numa sepultura rasa, nos rincões da Serra das Araras, dorme agora o sono da eternidade. Os seus feitos são, ainda hoje, o entretenimento, um dos temas dos serões ao pé do fogo, nos lares humildes do sertão mineiro.”



Enfim, a triste sina de Antônio Dó merece ser lida pelos apreciadores dos melhores romances, neste livro que devorei em duas madrugadas, e torcendo pelo impossível: para que a leitura continuasse indefinidamente. Ele está agora na estante do meu apartamento, em Belo Horizonte, ao lado de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e Os Sertões, de Euclides da Cunha, portanto, em lugar de honra. E, também com certeza, ainda será levado para as telas, em filme ou seriado de televisão, num futuro nem tão distante assim.



O romance na região Norte do Estado ganha agora uma referência. E a literatura brasileira tem novo ponto alto.



* Autor dos livros O Homem na Pré-História do Norte de Minas e A Inacabada Família Humana, jornalista e advogado.

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